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08/11/2003 - 17h01

SP, 450: O Bixiga como palco da vida

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VALMIR SANTOS
da Folha de S.Paulo

Não peça a José Celso Martinez Corrêa para morar na nostalgia. Ele até se permite pisar o terreno da saudade, mas permanecer ali por muito tempo seria "reacionário" demais para esse artista militante do teatro que contracena com a cidade de São Paulo desde que veio à luz, há 66 anos.

Ele nasceu em Araraquara, em 30 de março de 1937, mas consta que o bebê de um ano já vencia os cerca de 282 quilômetros de viagem, em vagão de trem, até a estação da Luz, nos braços da mãe ou do pai, para as festas de fim-de-ano na casa do avô.

Greg Salibian/Folha Imagem

Zé Celso posa ao lado de ator
fantasiado de Santo Expedito

O marceneiro espanhol Celso Martinez Carrera morava na antiga travessa Brigadeiro Luís Antônio, atual rua Adoniran Barbosa, de fato uma travessa da rua Brigadeiro, no Bixiga.

Historicamente, o bairro foi habitado por maioria de imigrantes italianos. Negros, nordestinos e descendentes de portugueses também compõem o DNA do Bixiga, o pedaço da cidade com a maior concentração de teatros.

"Chegar à rua Jaceguai era como se estivéssemos numa zona proibida, perigosa. Era ali que ficavam os quilombos, os cabeças-de-porco. Eu já ia a esse lugar-limite", afirma Zé Celso.

O final da rua Adoniran Barbosa, onde morava o avô paterno, foi desapropriado para a construção do Elevado Costa e Silva, o Minhocão, inaugurado em 1971. Não fosse a obra, a extensão da Adoniran Barbosa daria justamente no teatro Oficina.

"Faz 66 anos que eu existo naquele espaço", afirma o ator, diretor e dramaturgo, para ilustrar o seu vínculo com o Oficina, também o nome do grupo. O espaço funciona há 42 anos no mesmo endereço, o número 520 da rua Jaceguai.

No início dos anos 50, quando o menino, o quarto de sete irmãos, acompanhava o avô até o Brás, rumo à zona leste, para comprar madeira, era como alcançar o arrabalde.

O tom provinciano podia ser medido pelo carro do vendedor de leite de cabra que passava pelas ruas do Bixiga. "O mesmo carrinho passava, antes, pela rua onde morava o Oswald de Andrade", afirma.

O escritor modernista (1890-1954) foi um dos pensadores que mais influenciaram a formação de Zé Celso, sobretudo pelo movimento antropofágico na literatura e nas artes dos anos 1920.

Andrade escreveu "O Rei da Vela", peça considerada "irrepresentável", montada pelo Oficina em 1967 (leia texto abaixo).

O pai de Zé Celso, José Borges Corrêa, o levava para assistir aos filmes em cartaz no Cine Rex, esquina das ruas Rui Barbosa e Conselheiro Carrão, hoje uma igreja evangélica.

Noutro cinema, o Art Palácio, na avenida São João, as sessões eram suspensas durante o Carnaval para dar lugar aos bailes com serpentinas e confetes. O Teatro Brasileiro de Comédia, na Major Diogo, ícone da profissionalização dos atores, estava com as portas abertas desde 1948, mas Zé Celso só entrou ali anos depois.

Ele começou a assistir a peças ou participar de encontros da classe no teatro de Arena (rua Teodoro Baima), que fazia a defesa uma dramaturgia nacional. Seu pai gostava mais de espetáculos populares, ao contrário da platéia pequeno-burguesa do TBC do empresário Franco Zampari. Eles iam ao teatro Santana, na rua 24 de Maio, que colocava em cartaz espetáculos de teatro de revista.

Zé Celso tinha 19 anos quando começou o curso de direito nas arcadas do largo São Francisco. Fez a faculdade de 1956 a 1960, mas nunca foi buscar o canudo.

Em seus primeiros anos na cidade, morou na pensão do Abelardo, na rua Condessa São Joaquim, sempre no Bixiga. Vagava com sua turma em torno das praças da Sé, República, viaduto do Chá. Gostava ainda de pegar o bonde andando, literalmente. "Era um pouco perigoso, mas divertido e barato."

Deixava-se contaminar pela atmosfera cultural da época. Assistia a shows de cantoras como Maysa e Isaurinha Garcia na boate Baiúca ou no João Sebastião Bar. O rito de passagem se deu em 1958, quando criou, ao lado de colegas do curso de direito como Amir Haddad, Renato Borghi e Carlos Queiroz Telles, um grupo de teatro amador, alugando o teatro Novos Comediantes, na rua Jaceguai.

"O grupo nasceu de uma espécie de departamento cultural da faculdade. Reunia comunistas, católicos, pessoas de direita, de esquerda. O teatro acabou polarizando mais do que o movimento político", diz Zé Celso.

Em 1958, escreveu "Geni no Pomar", sua primeira peça, encenada como "teatro em domicílio" num casarão de Higienópolis que abrigava carteado. "Era um lugar chiquérrimo, aonde levantávamos dinheiro para manter nossa atividade de amadores."

Foi também naquele ano que escreveu "Vento Forte para um Papagaio Subir", apresentada no Novos Comediantes.

No início dos anos 60, aconteceu um show de bossa nova no auditório do Mackenzie, na rua Maria Antonia. Um dos objetivos era arrecadar dinheiro para o aluguel do teatro. Entre os organizadores, estava o compositor Geraldo Vandré. No palco, intérpretes como Nara Leão.

"Foi um escândalo, ninguém acreditava naquela mulher cantando tão baixinho, tão doce. Lembro-me da platéia pirada com aquela desconstrução absoluta do espetáculo", diz Zé Celso.

Logo depois, o grupo de estudantes assumiu de vez o Novo Comediantes, que saiu de cena com suas cadeiras cor-de-rosa, palco diminuto e rotunda (pano de fundo em semicírculo) para dar lugar ao teatro Oficina, inaugurado em 16 de agosto de 1961.

O espetáculo de inauguração foi "A Vida Impressa em Dólar", do americano Clifford Odets, sob direção de Zé Celso. Começava ali a aventura do Oficina, conjunto teatral que atraiu um coro de artistas como Flávio Império, Lina Bo Bardi, Edson Elito, Fauzi Arap, Etty Fraser, Eugênio Kusnet, Célia Helena, Raul Cortez, Ron Daniels, Ítala Nandi, Dirce Migliaccio, Fernando Peixoto e Nelson Xavier.

Um incêndio em 1966; as humilhações causadas pelo Comando de Caça aos Comunistas em 1968; a prisão e o exílio de Zé Celso em Portugal, entre 1974-79; o tombamento como patrimônio histórico em 1982; a difícil relação com o Grupo Silvio Santos, do terreno vizinho; enfim, não faltam exemplos de que o espírito insurreto é sina de quem faz arte naquele chão. Daí a urgência do agora, no qual a empresa de adaptar e representar "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, é apenas mais um capítulo, protagonizado inclusive por crianças e jovens de projetos sociais do bairro.

José Celso Martinez Corrêa, 66, é um dos mais notórios integrantes da classe teatral paulistana, à frente do grupo Oficina.

Nesta seção, "Caminhos da Memória" personalidades selecionadas apresentam sua visão de São Paulo, numa série que será publicada todos os domingos.


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