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15/11/2003 - 16h04

SP 450: O homem que ensina samba

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CYNARA MENEZES
da Folha de S.Paulo

Aos 82 anos, Alberto Alves da Silva, o Nenê da Vila Matilde, pode ser considerado um Sísifo do Carnaval paulistano. Se o mito grego estava condenado pelos deuses a empurrar eternamente um rochedo morro acima, a divina, dionisíaca tarefa de "seu" Nenê parece ser provar, fevereiro após fevereiro, que São Paulo não é "o túmulo do samba".

A definição, que teria sido cunhada por Vinicius de Moraes (1913-1980), jamais foi esquecida, para desgosto do carnavalesco mais famoso da cidade. "Os cariocas têm preconceito com o samba feito aqui e um pouco de dor-de-cotovelo, também", provoca.

Para comprovar, conta que, quando a escola que leva seu nome foi se exibir ao lado das campeãs cariocas, em 1985, o que se ouviu teriam sido comentários do tipo: "Puxa, como é que esses paulistas trabalham tanto e ainda sambam assim?".

M.Fernandes/FI
Nenê da Vila Matilde
Fundada em 1949, 11 vezes campeã, a Nenê de Vila Matilde é a terceira mais antiga escola de samba da capital paulista. Só perde, diz o sambista, para a Elpídio, que durou de 1925 a 1942, e a Lavapés, fundada em 1938, ainda ativa.

Nascido em Santos Dumont, Minas, Nenê veio para São Paulo aos 10 anos de idade, em 1931. Os nove primeiros meses foram passados em Itaquera; depois, a família se mudou para a vizinhança de Vila Matilde e Vila Esperança, zona leste, onde o carnavalesco vive até hoje. Embora viesse do interior, o que mais o menino estranhou na cidade grande foi a falta de energia elétrica na região onde foi morar. "Aqui era tudo mato e na base do lampião."

Surgido na década de 1920, o bairro de Vila Matilde começou a ser povoado nas terras de uma certa dona Escolástica Melchert da Fonseca (nome de rua por lá), que, segundo se conta, tinha uma filha chamada Matilde.

Vila Esperança-Vila Matilde

A estação de trem, inaugurada em 1921, foi desativada há três anos e está abandonada e suja, alvo dos pichadores. "Deviam reformar, faz parte da história do bairro", defende. Em compensação, há 15 anos a Vila Matilde, com mais de 90 mil habitantes, possui duas estações de metrô: a que leva seu nome e a Guilhermina-Esperança.


Nas ruas sem calçamento, o menino Nenê brincava de escorregar na lama nos dias de chuva e de jogar "cacheta" (jogo de cartas) a dinheiro nos mais ensolarados. As casas e sobrados, até hoje maioria no bairro, só foram receber grades de 20 anos para cá. Antes, as janelas viviam abertas. "Hoje tem ladrão demais", diz Nenê.

O pai Aldantino, carioca, conhecido como "Mulato Véio", influenciou os filhos no gosto pelo samba: Zé Pretinho, Iaiá (já mortos), Nenê e Didi, 78, que ainda toca bateria e é destaque na escola.

O primeiro pandeiro, instrumento favorito de Nenê, foi confeccionado por ele mesmo, aos nove anos, com uma lata de goiabada e uma dúzia de tampinhas de garrafa amassadas, onde batucava o samba de 1935: "Estão batendo/ Se for comigo diga que não estou/ É a mulata que há pouco tempo você abandonou".

Para desespero da mãe, Nenê se interessou mais pelo pandeiro do que pelos estudo. Logo seu pai iria lhe dar de presente um instrumento novinho, que, ferroviário, encontrou esquecido num banco do trem. Em 1940, em um show de sambistas cariocas da Portela (escola co-irmã da Nenê, que também tem as cores azul e branco) na rádio Tupi, conheceria a cuíca.

"Aquilo me encantou: o surdo, o tamborim, o pandeiro. Quando a cuíca entrou, virou um baticumbum do inferno. Que coisa linda a cuíca!", diz o sambista.

O "couro comia" na Vila Matilde e na vizinha Vila Esperança no Carnaval. As duas vilas nasceram e cresceram juntas, cada uma de um lado da linha de trem da antiga Central. Havia uma passagem unindo a Vila Matilde à Vila Esperança até os anos 60, quando foi construído o viaduto Dona Matilde, ligando os dois bairros. A inauguração da avenida Radial Leste, que terminava lá, deixou-os mais acessíveis.

O foco da folia era mesmo do lado da Vila Esperança. No dia seguinte ao cortejo oficial da cidade, a Nenê da Vila Matilde sempre desfilava ali, descendo o viaduto. As ruas ficavam tomadas pelos foliões. "Foi o povo mais carnavalesco de São Paulo", diz Nenê.

Adoniran Barbosa compôs uma marchinha em que cita a folia na região: "Vila Esperança/ Foi lá que passei/ O meu primeiro carnaval", diz a letra, imortalizada na versão do grupo Demônios da Garoa.

O antigo largo da Igreja, hoje totalmente modificado, era tido como a "Praça Onze" (centro da folia no Rio de outrora) do Carnaval paulistano, com a multidão dançando nas ruas.

Na rua Gilda, onde ainda funciona o colégio Monsenhor Passalacqua, que "educou todo o bairro", os foliões desciam cantando o sucesso de 1937: "Quero chorar/ Não tenho lágrimas/ Que me rolem na face pra me proteger...". As batalhas de confete tomavam conta da rua Otília, no clube Guarany, com seu time de futebol modesto e seu cordão animadíssimo.

O clube "Vasquinho" foi substituído por um edifício, bem perto de onde surgiu a escola, no largo do Peixe. Atualmente a quadra da Nenê está para os lados da próxima Vila Salete. Também famoso por seu Carnaval, o extinto "Cinco de Julho" influenciou em um dos nomes cogitados para a escola: por causa do dia da fundação (1º de janeiro de 1949), pensou-se em "Um de Janeiro".

Batalhas de confete

Acabou se tornando Nenê de Vila Matilde porque o então "Nenê do Pandeiro", instrumento debaixo do braço, apareceu na hora em que iam registrar a escola, e alguém teve a idéia de perguntar: "Como você se chama, rapaz?". E Nenê, 27, virou nome de escola de samba.

Presidente da escola desde sua fundação, em 1997 passou o comando para seu filho mais velho, Betinho, 46. Não foi a Nenê, porém, o ganha-pão do sambista, mas o trabalho como metalúrgico no Brás, durante 27 anos.

Se não deu dinheiro, o Carnaval trouxe felicidade: foi em um baile de mascarados que Nenê conheceu Maria Tereza, sua companheira por 30 anos e mãe dos três filhos. Morta em 1987, ela não sambava, mas ajudava em tudo. "Essas coisas, se não tiver mulher junto, não funcionam", diz Nenê. "Ai do carnavalesco que casar com uma mulher chata!"

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