Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
30/11/2003 - 11h19

SP 450: Bibliófilo vê meio século de transformações no Brooklin

Publicidade

CYNARA MENEZES
free-lance para a Folha

O empresário e bibliófilo José Mindlin, 89, estava viajando naqueles dias de 1976 em que o pânico tomou conta dos moradores da zona sul. Dizia-se que a represa de Guarapiranga, cheia a mais não poder, iria transbordar, inundando toda a região do Brooklin Paulista, onde estão sua casa e sua famosa biblioteca, hoje com 32 mil volumes. Na cabeça de dona Guita, mulher dele, só passou então um pensamento: que livro salvar? Decidiu-se pela primeira edição ilustrada do poeta italiano Francesco Petrarca (1304-1374) , uma raridade de 1488.

A barragem acabou sendo reforçada com sacos de areia e o desastre, evitado, mas, de certa forma, o Brooklin foi realmente inundado, e não por água. É dessa mesma década o início da expansão imobiliária do bairro, que rodeou de construções novas a residência adquirida pelo casal em 1947, quando tudo ali era zona rural. Hoje é um "oásis", como Mindlin diz, em plena selva de concreto: dentro, numa área de mil metros quadrados, jabuticabeiras e orquídeas; fora, automóveis, asfalto e arranha-céus.

Foi o verde do terreno que encantou Mindlin, porque a casa tinha apenas dois quartos e o Brooklin era considerado distante pelos padrões de então. A família não gostou nada. "Falavam: "Por que morar tão longe?" Mas a alternativa que tínhamos era uma casa geminada nos Jardins, mais cara e... sem jardim."



Tanto Guita como Mindlin nasceram no Paraíso. A família dele, semanas depois do nascimento, mudou-se para a Vila Mariana, onde o pai, "tido como o melhor dentista de São Paulo", comprou um casarão.

Quando se casou, em 1938, Mindlin foi morar no centro, em um prédio de apartamentos. Em 1942, passaria a viver em um edifício moderno, projeto de seu irmão, o arquiteto Henrique Mindlin (1911-1971), na Vila Mariana, atualmente descaracterizado.

Até 1950, quando ajudou a fundar a indústria de autopeças Metal Leve, vendida em 1996, Mindlin exerceu a profissão de advogado. Foi num passeio de bonde até o Brooklin para visitar um cliente, seu futuro sócio na empresa, que conheceu a casa.

"Nós adoramos o bairro e, quando ele [o sócio] se mudou de lá, me deu a opção de compra", conta. Mindlin, que pagava 750 réis de aluguel no apartamento, achou um bom negócio adquirir a casa por 2.100 réis, financiados em 20 anos.

E foi mesmo. Passados 12 anos, a passagem de bonde até a praça da Sé para pagar a prestação era mais cara do que o valor da própria mensalidade --algo em torno de R$ 2 em valores atuais, ele calcula--, e o casal resolveu quitar o imóvel.

Hoje, Mindlin estima que a casa valha seis vezes o que pagou. Ainda mais porque sua propriedade e a vizinha são as únicas daquele lado da rua Princesa Isabel que não se tornaram escolas ou estabelecimentos comerciais --e o que não faltam são propostas de compra.

Mas, quando ele, a mulher e os três filhos --a mais nova nasceu na casa-- se mudaram para lá, a rua não era calçada e não havia iluminação. Os primeiros sete anos foram passados sem telefone. Mindlin ia telefonar em um bar, onde seu olhar astuto de colecionador um dia acabou pousando sobre algumas garrafas encobertas de pó na prateleira: eram vinhos antigos, alguns de 1909, que estavam lá esquecidos pelos donos. "Cheguei em casa com 12 garrafas", lembra.

As ligações feitas do bar, segundo o empresário, eram cobradas como interurbanas. "O Brooklin era como uma cidade do interior, todo mundo se conhecia."

Ampliação

Com o tempo, o bairro ao redor foi se transformando --e a casa com ele. Logo que se mudaram, os Mindlin fizeram uma reforma na pequena edificação, adicionando outros dois quartos e toda a parte de serviços.

O pavilhão da biblioteca foi erguido em 1965, e sua parte subterrânea seria escavada no gramado 20 anos mais tarde, quando o pé de louro que havia no jardim, "intocável", murchou e morreu.

A cerca viva virou um muro de 2,5 metros de altura, isolando a propriedade desde que foi achada uma jararaca pelo jardineiro e que outro tipo de serpente deu mostras de rondar por ali: em 1985, Mindlin teve seu carro interceptado por assaltantes, que o fizeram voltar para casa, onde achavam que havia dinheiro. O casal passou por momentos de sufoco até eles desistirem do plano.

Na esquina de baixo da casa do bibliófilo, a avenida Água Espraiada trouxe, durante os três anos de sua construção, outro inconveniente da vida extramuros. "Foi uma poeira absurda", relembra. Mindlin conta que ali havia uma favela "muito inconveniente", ponto de tráfico de drogas. "Paravam carros de luxo o tempo todo. Eles também roubavam carros, e nosso motorista acabou fazendo um acordo com os bandidos para nos poupar."

A Água Espraiada, com 4.550 m, ligando a marginal Pinheiros à avenida Washington Luís, foi construída na última administração de Paulo Maluf (1993-1996). Levou esse nome por causa do córrego homônimo, canalizado na obra. O bibliófilo diz que, quando encontra o ex-prefeito, ele sempre pergunta para dona Guita: "A senhora está satisfeita com a avenida? Gostou da retirada da favela?" Mindlin faz pouco caso: "Continua cheio de favelas ali. O Maluf eliminou uma e escondeu as outras".

A modernização das vias deixou próximo o aeroporto de Congonhas, inaugurado em 1936. Antes, diz, era preciso enfrentar um "labirinto" de ruas, trajeto que atualmente faz em 10 minutos. Por outro lado, em alguns dias, o bibliófilo leva até uma hora para ir da avenida Paulista para casa.

Nos anos 40, a Vasp tinha só dois vôos para o Rio, às 7h e às 15h. "Dava para acertar o relógio pelo barulho da aeronave", suspira Mindlin, interrompendo a prosa para esperar passar sobre o jardim, de forma ensurdecedora, um dos aviões que, às dezenas, decolam e pousam a cada dia no aeroporto.

Leia mais
  • Brooklin teve o último bonde de São Paulo

    Especial
  • São Paulo, 450 anos
  •  

    Publicidade

    Publicidade

    Publicidade


    Voltar ao topo da página