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07/12/2003 - 00h01

Para reviver uma época de ouro

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LUIZ CAVERSAN
da Folha de S.Paulo

Quando chegou a São Paulo, no começo dos anos 50, o catalão Francesc Petit ficou impressionado com o jeito da cidade.

Era tudo muito limpo, arrumado, com um aspecto mais bem cuidado do que sua Barcelona natal, naquela época uma cidade repleta de mazelas comuns na Europa do pós-Segunda Guerra.

Cinquenta anos depois, Barcelona acabou se tornando uma das mais belas e amigáveis cidades do mundo, enquanto São Paulo perdeu charme e foi abandonada à própria sorte.

O que não desapareceu completamente foi o encanto que a cidade ainda desperta no artista plástico, publicitário, sócio e diretor de criação da Duailib, Petit e Zaragoza, agência que fez história na publicidade brasileira e que formou mais de uma geração de profissionais nos últimos 35 anos.

Tanto que Petit prepara um livro sobre São Paulo, para ser lançado nos 450 anos da cidade, que será baseado justamente no depoimento daqueles que vieram de fora, aqui se instalaram e nunca mais partiram.

"São Paulo parece o filme 'O Anjo Exterminador', do Buñuel", afirma Petit, referindo-se à instigante obra do cineasta espanhol cujo enredo é o seguinte: a alta burguesia de uma cidade mexicana se reúne para uma festa de gala e, inexplicavelmente, não consegue mais sair do local.

No caso de São Paulo, trata-se de um local que mudou muito em meio século.

"São Paulo era sobretudo uma cidade elegante. As pessoas se vestiam de maneira elegante, inclusive o proletariado andava bem arrumado, com sapatos limpos, chapéu. Na periferia, as casas proletárias eram tão civilizadas que nós moraríamos ali perfeitamente hoje. Era uma cidade maravilhosa comparada à Barcelona que eu havia deixado para trás."

Pão com banana

Quando saiu da cidade espanhola, Petit quase foi parar em Honduras, o destino primeiro de seu pai (um metalúrgico especializado em forja artística), sua mãe e os dois irmãos mais velhos, Jaime e José. "Um amigo do meu pai acabou convencendo-o a mudar o destino para cá, e aqui chegamos depois de cruzar o Atlântico no porão de um navio. Meu pai tinha no bolso talvez o que seria hoje um salário mínimo."

O destino dos Petit foi a casa de uma família espanhola que morava na rua Guaiaúna, via que praticamente marca até hoje o final do Tatuapé e o começo da Penha, na zona leste da cidade, aos pés da colina em que se encontra a tradicional igreja local, a de Nossa Senhora da Penha.



"Ficamos algum tempo meio acampados naquela casa, dormindo no chão mesmo, e depois nos mudamos para um casebre do outro lado da linha do trem. Foram três meses à base de pão com banana, até que meu pai e meu irmão mais velho arrumassem empregos."

Ele mesmo começaria a trabalhar em breve, dando sequência à incipiente carreira de desenhista publicitário trazida da Espanha.

Dessa época, além dos sobradinhos típicos da Penha, "todos arrumadinhos um do lado do outro", Petit guarda na lembrança o primeiro passeio que fez nas redondezas: "Passei em frente de uma casa e da janela saía o som de um rádio que tocava uma música do Francisco Alves".

Outra coisa que Petit trouxe de seu país natal foi a paixão pelo ciclismo. Havia sido campeão por lá e, ainda em 1952, participou de uma prova promovida em um velódromo construído no Anhangabaú. Foi o vencedor da disputa.

O primeiro emprego ele arrumou em uma loja de placas e cartazes de publicidade localizada na rua Riachuelo e da qual, seis meses depois, era já o chefe dos desenhistas. Por essa época a família havia se mudado para o Sacomã, ao lado do Ipiranga, de onde Petit partia todos os dias de ônibus para o centro. "Acontece que era um ônibus norte-americano, com direção hidráulica, bancos de couro e ar-condicionado. Lindo."



No ano seguinte aconteceria o fato que iria mudar a vida do jovem desenhista. "Eu me inscrevi num concurso de cartazes promovido pela Varig. Mandei meu trabalho e esqueci. Um dia, passando em frente à agência da companhia na rua Barão de Itapetininga, perguntei à moça do balcão se sabia o resultado. Ela me disse que o ganhador não havia deixado endereço ou telefone, por isso eles não conseguiam localizá-lo. Perguntei quem era o ganhador e ela me falou: um certo Petit. Fiquei com as pernas moles."

O cartaz, que institucionalizou um tucano como símbolo da Varig, deu "um bom dinheiro" e fama a Petit, que logo mudou de emprego, indo trabalhar na agência Thompson. Estimulado por essa lembrança, ele faz uma análise retrospectiva da publicidade no país. "O mercado brasileiro era um submundo da publicidade ruim americana. Fazia-se absolutamente tudo o que o cliente queria, quem mandava na agência eram os contatos, puxa-sacos dos patrões, os redatores ficavam numa salinha minúscula e os desenhistas eram os escravos que ficavam no porão."

Petit identifica dois momentos importantes que contribuíram para a mudança daquele quadro, em que o mercado publicitário nacional era "um quintal dos americanos".

"O primeiro passo foi dado por Fritz Lessin, um alemão que trabalhava na Standard, muito antipático e muito competente. Foi ele que fez a campanha do Quarto Centenário e introduziu um toque europeu, italiano na nossa publicidade."

O outro passo foi dado, conforme Petit, pelo publicitário Alex Periscinoto, da Alcântara Machado, quando passou a acompanhar "boa publicidade americana". Isso ocorreu dentro de um processo evolutivo no qual iria surgir, anos depois, em 1968, a DPZ, "que instalou definitivamente uma linguagem européia, mas com cara brasileira, na publicidade feita aqui", afirma.

Por essa época, na passagem dos anos 50 para os anos 60 e ao longo desta última década, São Paulo seguia sendo "uma cidade agradável".

"Eu sempre circulei entre publicitários e entre artistas", recorda Petit. "Eu ia ao TBC, frequentava o Masp, que ainda ficava no prédio dos 'Diários Associados', na rua Sete de Abril, em cujo bar, o Bar do Museu, se encontrava toda a intelectualidade paulistana, de Oscar Pedroso Horta a Ciccilo Matarazzo, passando por Alfredo Volpi, Aldemir Martins, Grassmann, Yolanda Penteado, José Geraldo Vieira, Vilanova Artigas e Sérgio Milliet. Tive o privilégio de conhecer todos."

"O Ciccilo Matarazzo era um homem fantástico, moderno. Ele dizia que não era nada, que os operários de suas fábricas, sim, é que tinham importância."

Ao falar de Ciccilo, Petit imediatamente recorda da "sensacional" 2ª Bienal de Artes Plásticas de São Paulo, realizada pelo empresário em 1953 e que integrou os festejos do Quarto Centenário, no ano seguinte.

Do Bar do Museu, com a energia de quem está na casa dos 20 anos, Petit seguia para os restaurantes então na moda, onde os jantares "se estendiam até quatro, cinco da manhã".

"Frequentávamos o Gigetto, o Fasano, o Casserole, mas o restaurante mais badalado era sem dúvida nenhuma A Baiúca, na praça Roosevelt."



Na avaliação de Petit, essa "época de ouro" de São Paulo começou a acabar com a morte do poeta, crítico, ensaísta e historiador Sérgio Milliet (1898-1966), um dos próceres da intelectualidade nacional, ou, como quer o publicitário, "o guia da cultura paulistana".

Grande decadência

Dos anos 60 para os 70, o que se passou a ver foi "uma grande decadência": "Os hábitos mudaram muito, a cidade passou a crescer demais, deixando para trás a forte influência européia, que foi desaparecendo com a migração interna. Hoje eu entendo isso melhor do que naquele tempo e percebo que os vestígios de uma época foram destruídos. Veja só como está o centro da cidade, que era tão bonito: sujo, abandonado. Gosto muito da idéia dessa Associação Viva o Centro. A prefeitura vai para lá e o governo do Estado deveria ir também. É a única forma de reabilitar".

Apesar dessas constatações, ele não alimenta nenhum rancor em relação à cidade que escolheu para permanecer --além de Penha e Sacomã, já morou no Paraíso, em Higienópolis e vive no Pacaembu.

"É uma cidade absolutamente apaixonante", diz ele, ao revelar que seu livro sobre a metrópole, além dos depoimentos de migrantes e imigrantes ilustres (entre os quais Edla Van Steen, Olavo Drummond, Magy Imoberdorf, Fernando Morais e Domingos Alzugaray), terá uma cronologia da vida cultural dos últimos 50 anos.

"É uma seleção dos grande momentos vividos durante a época de ouro da cidade."

É época que passou, mas sobrevive na memória dos que, tal qual no filme de Luís Buñuel, daqui não conseguem sair.
 

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