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21/12/2003 - 05h00

SP 450: Muito além dos Jardins

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SÉRGIO DÁVILA
da Folha de S.Paulo

Visualize São Paulo sem o prédio do Caetano de Campos, na praça da República. Ou sem os Jardins. Ou sem o pouco que resta da serra do Mar. Entre os anos 70 e 80, um paulistano de bastos bigodes brancos, olhar suave e argumentação de tribuno romano teve a mesma visão e agiu para que ela nunca se concretizasse.

Seu nome é Modesto Carvalhosa, 71, advogado especializado em direito societário, autor de livros sobre o tema, sócio de um escritório respeitado, professor da Faculdade de Direito da USP entre 1971 e 1985 e presidente do Condephaat entre 1984 e 1987.

São desse período suas duas realizações mais polêmicas, o tombamento dos Jardins e da serra do Mar. "Mas meu amor por São Paulo começou antes", diz ele durante entrevista à Folha em seu escritório, uma casa plantada entre os espigões residenciais da rua José Maria Lisboa, em São Paulo.

Primeira memória

Bem antes. No caso, entre os anos 30 e 40, sua primeira memória da cidade, quando, criança, morava com seus pais e os avós maternos num casarão em Higienópolis. "Naquela época, era costume os filhos viverem com os pais mesmo depois de casados."

Estamos no número 768 da rua Baronesa de Itu. A casa em que mora o pequeno Modesto Souza Barros Carvalhosa tem 20 metros de frente num terreno de 80 metros de comprimento. "No fundo, um quaradouro de roupa, galinheiros, um galpão para guardar varas de pesca, fantástico, em plena Higienópolis", lembra.

Ali, os costumes eram rígidos e deviam ser respeitados. Às 20h pontualmente, todos jantavam, e os adultos discutiam as notícias internacionais dos jornais. Então os avós se recolhiam para um enorme quarto ao lado da sala e, aos poucos, os filhos e suas famílias iam subindo. Às 22h, entrava em vigor a lei do silêncio.

"É que não havia laje, então qualquer barulho no andar de cima ecoava pela casa inteira", conta ele. Durante o dia, as crianças eram proibidas de entrar na biblioteca. "No máximo, meu avô nos deixava ouvir com ele o programa "A Música dos Mestres", na rádio Gazeta, sempre às 13h."

De lá, Carvalhosa mudou com os pais para o número 838 da rua Dr. Homem de Melo, em Perdizes, na mesma construção que depois sediaria o restaurante espanhol Cantábrico, uma casa erguida pelo Homem de Melo que dá nome à rua, com projeto do início do século feito pelo renomado arquiteto Ramos de Azevedo.

De lá ele se lembra de um galinheiro "enorme", postado no quintal, de uma varanda larga e do cheiro de madressilva. Só sairia do teto mantido pelo pai, o professor de literatura inglesa e pastor da Igreja Presbiteriana Modesto Carvalhosa, para se casar. Já com a artista plástica Helena Carvalhosa, instalou-se na rua Polônia, onde ela mora até hoje. Dali veio a primeira briga e o germe do que depois viraria gosto pela causa do patrimônio histórico e urbano. Em 1970, quando a cidade era comandada por Paulo Maluf em seu primeiro mandato, a mãe do prefeito, a mítica dona Maria, mudou-se para a casa ao lado dos Carvalhosa, na esquina das ruas Sofia e Inglaterra.

"Ela havia acabado de comprar o que restara da fazenda dos Crespi e ali construiu sua casa, um palacete que ocupava 80% do terreno de uns 2.500 metros quadrados", conta o advogado. "Pois sua primeira providência foi mandar arrancar todas as árvores de jacarandás-mimosos da esquina."

Carvalhosa mandou aos jornais uma carta em que analisava a atitude da mãe do prefeito sob a ótica da psicologia. "Estávamos na época mais dura do regime militar, ninguém falava mal de uma autoridade indicada por eles, muito menos de sua mãe." A repercussão foi tão grande que as árvores voltaram --"Não os jacarandás-mimosos, que já não viviam mais, e sim outras, enormes, que estão lá até hoje."

Mas foi da condição de ex-aluno do tradicional colégio Caetano de Campos, na Praça da República, que viria o reconhecimento público. Em 1975, a gestão do prefeito Olavo Setúbal decidiu derrubar o prédio histórico de 1894, por onde passaram alunos como Mário de Andrade, Cecília Meireles e Sérgio Buarque de Holanda, para dar lugar a uma megaestação de metrô.

Carvalhosa reuniu ex-alunos ilustres, e juntos entraram com mandado de segurança para impedir a destruição. Segundo recorda, conseguiram apoio dos jornais e da população mais ou menos ao mesmo tempo, e o movimento antidemolição cresceu. "Foi a primeira reação popular contra uma decisão do regime militar desde 1969", contabiliza.

O juiz decidiu acatar o mandado, mas chamou antes o então secretário de Educação, ao qual o prédio era subordinado, para o prevenir da derrota. "Foi assim que nasceu o decreto que tombou o Caetano de Campos, em 1975, para evitar vexame maior", relata.

O esforço lhe renderia mais tarde o convite do então governador emedebista Franco Montoro para presidir o Condephaat em sua gestão (1983-1986). À frente do órgão estadual de preservação do patrimônio histórico, tomaria suas decisões mais polêmicas.

A primeira: tombar os Jardins.

Não uma casa, uma construção, uma igreja, mas a região inteira, a área formada pelos jardins América, Europa, Paulista e Paulistano, num quadrilátero que vai do Ibirapuera à avenida Rebouças, da rua Estados Unidos à avenida Faria Lima. "A idéia nasceu de um movimento de salvação de bairros com massa vegetal grande e construções baixas", resume.

O plano era ambicioso: a incorporação de toda a região ao parque do Ibirapuera. "É um projeto futurista, para 50, 80 anos". A ação abriu caminho para outros tombamentos de bairros inteiros, que viriam nos anos seguintes, como o do Pacaembu. E comprou briga com o então prefeito, Jânio Quadros (1985-1989).
Resistência total

"Houve uma resistência total dele, que tomou todas as medidas possíveis, pessoais inclusive", diz Carvalhosa. Ele conta que à época, dando aulas na USP, emitia pareceres da casa ao lado à qual morava, na rua Inglaterra. "Foi o suficiente para o prefeito chamar a imprensa e declarar: "O presidente do Condephaat tem escritório em zona residencial!". Tive de mudar de lá para onde estou."

A segunda polêmica veio logo depois, com o tombamento da serra do Mar --em sua "totalidade e integralidade". "Também sofreu resistência, mesmo dentro da USP, onde alguns acharam exagerado, mas depois acabaria sendo o embrião do tombamento nacional e de movimentos como o da SOS Mata Atlântica e outros."

Agora, Modesto Carvalhosa anda mais calmo. Pai da assessora de imprensa Sofia e do radialista, músico e performático Luiz Antônio, também conhecido como Jai Mahal, e casado pela segunda vez com Claudia Silveira Correa, dedica-se mais aos netos, Gil, 21, Marina, 13, e Ananda, 11.
Até comprar a próxima briga.
 

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