Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
28/12/2003 - 04h29

A cidade de SP como cenário e personagem

Publicidade

CYNARA MENEZES
da Folha de S.Paulo

Descendo rua abaixo em sua bicicleta, o adolescente Carlos Reichenbach está indo assistir uma chanchada num dos cines espalhados pelos bairros da cidade. Larga seu veículo no saguão do cinema, sem muita preocupação. Estamos no final dos anos 50, e há bem menos assaltos e bem mais salas de exibição em São Paulo fora dos shoppings.

"Lembro do cine Universo, no Brás, cujo teto abria nas noites de lua cheia. Do cine Piratininga, o mais comprido da América Latina. Do cine Maringá, no Jabaquara, que virou salão de baile. Do cine Maracanã, na Vila Maria. O cinema era um estímulo para conhecer outras plagas", diz Reichenbach. "Hoje nem há tantos cinemas na rua nem dá para andar de bicicleta, porque falta respeito ao pedestre e ao ciclista..."

Nascido em Porto Alegre por acaso, durante uma temporada que seus pais, um paulista e uma estoniana, passaram por lá, Reichenbach é paulistano desde os quatro meses de idade. Até os 11 anos, viveu no Jardim América, numa casa que hoje pertence ao também diretor e produtor de cinema Anibal Massaini Neto, e que, na infância de Carlão, era conhecida como "a casa do puma".

Isso porque o pai do cineasta tinha como hobby criar animais selvagens: além do tal puma, havia ainda um casal de tamanduás na casa de campo, às margens da represa Billings, chamados Pinga e Conhaque. E um urubu-rei de nome Jacó, doado ao zoológico.

"Era engraçado, porque para mim a Billings nessa época representava o término da cidade. O Jabaquara, onde passei a adolescência, era considerado periferia. Mas outro dia, uns documentaristas holandeses me pediram para levá-los onde São Paulo acabava e me dei conta de que não acaba nunca", diz o cineasta.

Esse "crescimento degenerado" da cidade aparece em filmes como "Anjos do Arrabalde" (1987) e "Amor, Palavra Prostituta" (1982). "Em pouco tempo, um bairro proletário se transforma num manancial de especulação imobiliária. Os pobres são cada vez mais empurrados para a periferia", afirma.

Há mais de 40 anos morador de Higienópolis, Reichenbach dá continuidade ao amor do pai pelos animais: aprendeu com o cronista Rubem Braga a plantar bocas-de-leão na varanda do apartamento para atrair passarinhos, e fica todo prosa ao contar que um dia surpreendeu duas maritacas pousadas sobre o computador.

Os longos passeios de bicicleta a partir do Jabaquara foram uma influência decisiva na escolha de São Paulo como "personagem absoluta" de seus filmes. "Meus amigos me chamavam de "noivo da cidade", por causa do prazer da prospecção que veio com o ciclismo." Mas optou por uma visão "de baixo": os proletários são o foco, como as "Garotas do ABC" de seu mais novo filme, com estréia prevista para março.

Em "Filme Demência" (1986), literalmente de baixo: filmou do chão, em um carro conversível, a fuga de São Paulo do personagem principal, Fausto (Ênio Gonçalves), como contraponto à filmagem de helicóptero da fuga de Carlos (Walmor Chagas), em "São Paulo S/A" (1965), de Luís Sérgio Person (1936-1976), a quem considera responsável por seu ingresso no cinema. "Filme Demência" é minha resposta a "São Paulo S/A", uma leitura às avessas do filme. Mostra uma relação de amor e ódio profunda com a cidade, exatamente como a que eu sempre tive", diz.

Person foi um dos professores de Carlão na Escola Superior de Cinema São Luís, uma das primeiras instituições de nível universitário do país dedicadas à arte cinematográfica, que ficava ao lado da igreja pertencente ao colégio homônimo, na rua Haddock Lobo, esquina com a av. Paulista. Entre os mestres, estava também Paulo Emílio Salles Gomes, que introduziria Reichenbach a outra paixão, o anarquismo.

Ali, segundo o cineasta, é que teria nascido o chamado cinema "Boca-do-Lixo", e não no centro da cidade, como se costuma dizer. A escola acabou por atrair não só alunos, como interessados em cinema: circulavam na faculdade, e nos "anexos" bares Ponto 4 e Riviera, na Consolação, nomes como José Mojica Marins e Rogério Sganzerla.

O centro já exercia sua atração sobre os cinéfilos com a sala de exibição da Sociedade Amigos da Cinemateca, na rua Sete de Abril, e ainda mais com o bar que ficava em frente, o Costa do Sol. Como as distribuidoras estavam localizadas nas proximidades das estações (Luz, rodoviária, Roosevelt e Sorocabana), logo a onda marginal se transferiu da região da Paulista para o bar Soberano, na rua do Triunfo.

"Amizades se fizeram e se desfizeram no bar Soberano e no Paribar, na galeria Metrópole. O eixo intelectual era ali, embora na época fosse preferível ter a mãe xingada do que ser chamado de intelectual", ri Reichenbach, que, de todos os termos designados para o cinema que era feito no período (marginal, Boca-do-Lixo/Boca-do-Luxo, Údi-Grúdi), prefere "pós-Cinema Novo".

No auge da pornochanchada, nos anos 70 e 80, atuou prolificamente como diretor de fotografia, apesar de aceitar nomear com essa designação apenas dois filmes seus como diretor de fato: "A Ilha dos Prazeres Proibidos" (1979) e "O Império do Desejo" (1981). Mesmo assim, diz que ambos possuem conceitos políticos subliminares, despercebidos pelos censores do regime militar e pelo produtor, Antônio Galante.

"No meio de "Império do Desejo", eu havia colocado a frase "A Propriedade é um roubo", e o Galante me chamou para dar uma bronca, perguntando se tinha usado o dinheiro dele para fazer um filme marxista. Eu falei: "Mas isso é Proudhon". E o Galante: "Ah, então tá bom'", diverte-se. O anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) é um dos ídolos de Reichenbach.

Já como diretor de fotografia fez até um filme pornográfico, que não assinou. "Confesso que me senti um açougueiro. Mas foi uma bobagem não assinar, porque a fotografia é muito bem-feita." Em alguns filmes, por considerar a fotografia aquém da direção, preferiu usar o pseudônimo Alfredo Stinn. "Como fotógrafo fui uma vagabunda", brinca.
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página