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18/01/2004 - 04h30

Caminhos da Memória: São Paulo, palco e bastidores

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CLÁUDIA CROITOR
da Folha de S.Paulo

Naquele tempo, Nair Belo era "igual a essas meninas da novela "Celebridade". "Eu entrava em concurso, eu fazia qualquer coisa, eu queria ser atriz", conta ela.

Qualquer coisa incluía se candidatar ao concurso de Miss Objetiva (o júri era composto por fotógrafos), promovido pela TV Tupi e que talvez fosse um trampolim para a fama.

Aquele tempo era o comecinho dos anos 50, e Lolita Rodrigues já era estrela da emissora paulista. Cantava, apresentava programas e estava começando a realizar o sonho de ser atriz.

Nair não ganhou o concurso de miss (nem a jovem Hebe Camargo, que também participou e ficou em segundo lugar), mas saiu de lá amiga de Lolita. E, mais tarde, também se tornou atriz.

Na São Paulo dos anos 40, ainda sem TV, o caminho da fama passava necessariamente pelo rádio. Na Excelsior, em 1949, antes de tentar ser miss, Nair fez um teste e foi aprovada. Começava aí a carreira que já vai completar 55 anos.

"Minha mãe, como boa descendente de italianos, ficou doente uns seis meses. Era "minha filha virou prostituta", sabe?"

Pela vontade da mãe, Nair, hoje com 72 anos, seria uma excelente dona-de-casa, e só. "Sou diplomada em corte e costura, bordado e pintura."
Na escola, só fez até o primário em um grupo escolar do Cambuci, onde morou durante toda a infância, até se mudar para o Ipiranga, com 14 anos.

"Mas sempre observei muito as pessoas, o jeito de falar, queria aprender a falar direito." Um dia, soltou um "nóis vai" na frente do produtor e apresentador Blota Jr., que se tornaria seu padrinho pessoal e profissional. "Ele me disse: "Se você falar assim de novo, você volta para o Ipiranga e nunca mais vem para a rádio"."

Aprovada no teste da Excelsior, Nair logo chamou a atenção dos diretores e foi para a Record, que ficava na esquina da rua Quintino Bocaiúva com a rua Direita, no centro. "Essa moça é muito talentosa, diziam de mim."
Mas havia uma pedra no caminho da carreira de rádio-atriz dramática: as risadas.

"Eu ria de tudo, era impressionante. Fazia novelas, teatro, tudo ao vivo, e eu vivia tendo ataques de riso, um horror. Até que um dia o Manoel Durães [um dos pioneiros do radioteatro] gritou: "Tirem essa louca daqui"."

Blota Jr., na época diretor artístico da Record, sugeriu que a moça se tornasse locutora. E assim foi. Mas as risadas continuavam, e um dos seus maiores acessos de riso veio com um erro de locução do colega. "Comecei a rir muito, muito, fazia sinal para o sonoplasta aumentar a música. Mas, para meu azar, o doutor Paulo Machado de Carvalho estava ouvindo a rádio naquele momento."

E a ordem dessa vez veio do dono da emissora: "Tirem essa louca daqui".
Lolita, 74, não ria tanto, cantava. Nascida em Santos, batizada Sílvia, descendente de espanhóis, mudou-se para a capital aos 13 anos. Pianista, ganhou uma bolsa de estudos de um conservatório paulistano para continuar o aprendizado do instrumento, iniciado no litoral.

Morava no bairro do Tatuapé e tomava diariamente o bonde Penha-Sé para ir às aulas de piano.

"Passava todo dia pela praça da Sé, onde tinha um grande terminal de ônibus. Às vezes ficava mais de uma hora por ali."

Para a então desconhecida Nair, a popular praça da Sé, no entanto, era tão distante quanto uma viagem a Nova York. "Naquele tempo eu não podia andar sozinha, e minha mãe quase não me levava. Para ir do Cambuci, onde morávamos, até lá, tínhamos de tomar bonde, não era fácil. Íamos mesmo é para o museu do Ipiranga, todos os domingos. Depois que eu fiquei moça, para mim era uma aventura andar no centro", diz.

Para Lolita, era diferente. "Nova York era a avenida São João. Aquilo era muito bonito, muito chique. Tinha o Cine Metro, era uma loucura ir lá na matinê de sábado, chiquérrimo. Aliás, a cidade toda era muito chique. Para entrar no auditório da rádio Tupi, por exemplo, só se o homem usasse terno e gravata. Moça de calça comprida, nem pensa.r"

Lolita freqüentou muito o auditório da rádio. Cantora de música espanhola desde os dez anos, aos 15 também fez teste e foi contratada pela Bandeirantes. Em 1946, foi para a Tupi, onde continuou cantando.

"Mas eu queria ser atriz, então comecei a participar de novelinhas de rádio", conta. Em 1950 veio a televisão, e lá estava ela na inauguração da TV Tupi, a mesma do concurso de miss, cantando o "hino da televisão".

"Sou a única pessoa que sabe cantar esse hino. Que, aliás, é um horror."
Na TV, Lolita, que a essa altura já era professora primária formada, cantava e apresentava, mas continuou querendo ser atriz. "Pedia para o Cassiano [Gabus Mendes] me deixar fazer teleteatro. Aí eu entrava, fazia uma cena um dia, outra fala no outro dia... Igual ao que eu faço hoje em "Kubanacan", diz, rindo, sobre seu papel de pouco destaque na atual novela das sete da Rede Globo.

Pouco depois, viveu sua primeira protagonista em "O Corcunda de Notre Dame", exibida às terças e quintas. Mas o grande marco da sua carreira teve início no final dos anos 50, com sua entrada, junto com o então marido Ayrton Rodrigues, para apresentar o "Almoço com as Estrelas".

O casal deixou a emissora em 1960 para voltar 13 anos depois, após passagens pela TV Excelsior e TV Record, e se tornar programa obrigatório nos sábados dos paulistanos, com o "Clube dos Artistas" e a volta do "Almoço".

Para comer a maionese com pintado na brasa na Tupi --segundo Lolita, era o mesmo prato todo sábado-, aparecia "todo mundo que hoje é cartaz".

O primeiro programa em que Elis Regina esteve em São Paulo foi lá. Nara Leão, Marlene, Jair Rodrigues... "Esse ia lá só para filar a bóia. Demos a ele o apelido de "garfinho de ouro"."

Ao "Clube dos Artistas" compareciam inclusive aspirantes a celebridades internacionais.

Certa vez, lembra Lolita, na época em que o programa já era gravado, e não mais ao vivo, a madrugada avançava e o cantor convidado não chegava.

"Todos os figurantes estavam dormindo. Aí a produção colocou um papel na minha mão para que eu apresentasse: "Cantor espanhol que já foi jogador de futebol". As câmeras foram ligadas, os figurantes acordando, e entra o Julio Iglesias. Aquele homem lindo, às 3h manhã, cantando de graça no nosso programa. E o pior é que quase ninguém aplaudiu."

Nair continuou na rádio até 1953, quando deu um tempo na carreira para casar e ter filhos. Como não tinha desistido de ser atriz nem parado de rir, resolveu mais uma vez seguir o conselho do padrinho Blota: foi fazer comédia.

Passou a integrar o humorístico "Super Flit", no qual tinha como colega de elenco o cantor e compositor Adoniran Barbosa.

Voltou à ativa em 58, quando a TV já estava bem estabelecida em São Paulo, e virou garota-propaganda. Até que, no início dos anos 60, foi convidada por Renato Corte Real para o humorístico "Epitáfio e Santinha", exibido na TV Record. "Dávamos 90 pontos no ibope, era absurdo."

Tanto prestígio e 14 anos na emissora, no entanto, não foram suficientes para que Nair recebesse um convite para a festa de 50 anos da Record, em 2003.

"Esqueceram de mim. Fui para lá muito antes que [Ronald] Golias, que Hebe, que todos. O Paulinho Machado de Carvalho foi meu padrinho de casamento, o Blota Jr. também. Todo mundo foi lembrado, menos eu. Não sei porquê, também não perguntei. Ajudei a fazer a história da Record, mas, enfim...", diz. E completa, rindo: "No dia em que eu encontrar com o bispo, vou dizer: "bispo, alguém lá em cima não gostou do que o senhor fez comigo, hein?'"

De sua época na emissora, Nair diz sentir saudades dos jantares no Gigetto, da rua Nestor Pestana, reduto de artistas, boêmios e companhia. "Giovanni Bruno [dono de restaurante em SP] na época era garçom. Os artistas iam lá, sem dinheiro, e ele servia um prato enorme para que eles dividissem em quatro, cinco, e pagassem pouco", afirma.

De criança, a lembrança é da comida do primeiro restaurante Fasano. "Meu pai tinha um clube de jogo no edifício Martinelli [centro de SP]. Quando ele saía de lá, passava no restaurante do [Fabrizio] Fasano, na praça Antonio Prado, e levava as coisas para casa. Era muito bom."

O clube de jogo veio depois que seu pai foi reformado no Exército. Tenente, ele "fez parte da história de São Paulo": lutou contra Getúlio Vargas na revolução de 1932. "A gente tinha muitas fotos dele de farda, perto do canhão. Olhávamos com orgulho, sabe?"

Hoje, 50 e tantos anos depois de se conhecerem no concurso de miss, Lolita e Nair continuam amigas e continuam atrizes. Até o final da semana, atuarão juntas em "Kubanacan".

Gravam no Rio, mas permanecem morando em São Paulo. Como antigamente, Nair continua indo às vezes comer a comida do Fasano. "Outro dia estava lá com o velho, o Fabrizio, lembrando histórias do passado", diz.
"Não é saudosismo, mas São Paulo era muito diferente, muito tranqüila. Bom, é saudosismo sim", afirma.

Lolita diz que hoje não sai muito. "Gosto de ficar em casa fazendo palavras cruzadas." Quando sai, passeia nos Jardins, na Oscar Freire e na rua Augusta. "Adoro andar por ali, nunca vou gostar de fazer compras no shopping." Mas seu lugar preferido em São Paulo é outro: "Eu gosto mesmo é da avenida Brasil, sempre gostei. Acho aquele lugar um encanto".
 

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