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25/01/2004 - 05h13

Artigo: A arte do futebol de rua - São Paulo, anos 40

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BENTO PRADO JR.

O leitor de hoje achará muito ousada a tarefa de jogar futebol, ao meio da tarde, na alameda Santos, perto da Brigadeiro, ou no início da Cardoso de Almeida, onde se abre, de cima, o Sumaré. E, no entanto, para mim, era prática trivial. Não me lembro de carros que atrapalhassem demais nossa prática cotidiana. Prática que implicava um sistema de regras -uma arte- hoje inimaginável.

Chegando a São Paulo em 1942, com cinco anos, poucos laços me ligavam à metrópole. Pelo contrário, meu coração opunha a beleza (o passado, o não real) ao presente (o real, sempre recusado). Em minha primeira dissertação escrita no primário, não levei nota dez porque falando de Jahu, falava também em são paulo (sic, insistindo nas minúsculas do nome da capital). Fui corrigido e não confessei que não se tratava de erro, mas de intencional oposição de valores, como a que opõe o Ser ao Nada.

Na verdade, só comecei a ser paulistano de coração, sem sê-lo de nascimento, um ou dois anos depois, com a ajuda de meus primos irmãos Nelson Cayres de Brito e James Galvão Bresciani (o primeiro, residente do Sumaré e, o segundo, de meu bairro, no Paraíso). Foram eles que me iniciaram no futebol, começando pelo da rua, para culminar em campos de várzea.

Mas voltemos ao essencial ou aos princípios da arte, a começar pelo uso da rua em sua materialidade. Uma rua, por definição, tem: calçadas (o que era o campo) e seus limites, a rua "stricto sensu" e a parede das casas. É claro, quando se trata de "tékhne" e "phüsis" (matéria ou natureza, pouco importa), que os gestos eram diferentes de acordo com a natureza das bolas escolhidas.

Havia as de meia, que se caracterizam por um ritmo lento e quase silencioso --sem percussões, no máximo, num ""poff" surdo--, mas as havia também de borracha (leves e irresponsáveis, de comportamento imprevisível) ou ainda as de "capotão", de couro, infladas pela câmara "michelin" (que pronunciávamos assim mesmo, sem obedecer a fonética da língua francesa: como na rima "ai de mim, michelin!"). O trabalho era amarrar o capotão, como fazemos hoje com nossos sapatos.
De qualquer maneira, meu golpe (ou o bom golpe, que não era apenas meu) era chutar contra a parede, quando o adversário investia de frente, para recuperar a bola adiante, às suas costas, enquanto o inimigo perseguia desesperadamente o Nada. Às vezes não dava certo, e me lembro de cair de bunda nos paralelepípedos da sarjeta e ficar vários minutos sem respiração: pior, sem qualquer ação.

Com o tempo, deixamos as calçadas para jogar na várzea. No meu caso, em dois times: em primeiro lugar, o do Paraíso, de meu primo James, e, em segundo lugar, no Sumaré, com o time de meu primo Nelsinho (o Ubirajara F.C., como me lembrou Renato Pompeu), que só perdeu, até de dez a zero, jogando fora do bairro.

Não faltavam várzeas onde perder nas imediações desses bairros. No meu bairro, além da rua Tutóia, tudo eram campos de futebol, no Ibirapuera, anterior ao 4º Centenário, tão diferente do atual. Ao lado do Sumaré, havia os terrenos da City --só campos de futebol--, aparentemente o que hoje é boa parte do bairro de Pinheiros. Mas era fatal que, mais cedo ou mais tarde, eu resolvesse a tensão que me fazia oscilar entre Jaú (na grafia atual) e São Paulo (já plenamente incorporado).

Tentei fazê-lo em 1950, levando de volta o futebol paulistano que aprendera para minha terra natal, ou melhor, perto dela, na Bica de Pedra, onde meu pai tinha fazenda. Na ocasião, lá montei meu time com os meus amigos, filhos dos trabalhadores, comprei as camisas da equipe "Redenção" (que era o nome da fazenda de meu pai), e desafiei a equipe de Barra Mansa, vila situada entre Bica de Pedra e Jaú.
O fato é que pouco valeu a experiência do futebol de rua na nossa capital do pós-guerra. Minha equipe tinha jogadores muito jovens (entre oito e dez anos), enquanto os adversários contavam com jogadores bem mais altos, fortes, quase adultos, enfim. O resultado foi, mais ou menos, dez a dois. E tive de ouvir, ao fim da peleja, do chefe dos adversários: "Então, você vem aqui de São Paulo só para levar uma lavada dessas?". Não redargüi e retornei triste com meus amigos para a fazenda.
Lembro-me sobretudo desse fatal ano 50. Voltando para a Redenção, soube por meu pai (que pela primeira vez triste estava por razão tão fútil) que o Brasil perdera do Uruguai no Maracanã. Aí termina minha experiência com o futebol e inicia-se uma nova relação com a cidade de São Paulo.

Logo a seguir, no início dos anos 50, começaria a dedicar-me à filosofia, à literatura e, indireta ou especulativamente, à política (o que mais tarde me valeria minha exclusão da USP). Digamos que a lição foi aprendida: tornei-me paulistano triste, escrevi alguns poemas melancólicos, comecei a indagar pelos fundamentos da ""tékhne", tornei-me adulto, exilei-me, viajei pelo mundo.

Nunca mais joguei futebol. Mais ainda, uma moléstia nervosa atinge meu lumbago e mesmo andar, como os homens normais, tornou-se, para mim, um problema. Doem-me, sempre, as pernas. Mas até hoje, quando escrevo meus textos de filosofia, contra aquilo que me parece mais detestável na filosofia hegemônica nas universidades do mundo, nunca deixo de tentar chutar a bola contra a parede para driblar o meu adversário.

BENTO PRADO JR. é filósofo, professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos (SP) e professor emérito da USP. É autor de, entre outros, "Presença e Campo Transcendental" (Edusp).

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