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entrevista
01/09/2004

Médico promove a "amazonização" do Brasil

Mostrar a cara das comunidades da Amazônia para o resto do Brasil e fortalecê-las, para que continuem a produzir de maneira sustentável, é uma das propostas do projeto Saúde&Alegria -que atua em 150 comunidades na área da Floresta Nacional dos Tapajós e da Reserva Extrativista Tapajós/Arapiuns, situada no Médio Amazonas Paraense. Nesta entrevista, o médico infectologista Eugênio Scannavino Netto, um dos coordenadores e fundadores do projeto, fala sobre o trabalho desenvolvido no local e sobre a necessidade de se promover o que chama de "amazonização do Brasil".

"Somos nós, brasileiros, que constituímos ameaça à Amazônia. Temos que assumir a responsabilidade sobre esse território e para isso precisamos conhecer de perto a Amazônia real. É só observar: onde tem comunidade extrativista, a floresta está preservada", diz ele.

Para sensibilizar os brasileiros, o projeto instalou recentemente no Jardim Botânico do Rio de Janeiro o Amazônia Brasil – evento que contou com uma exposição de fotografia, palestras, oficinas, artesanato, contadores de histórias e a participação de comunidades e ONGs da Amazônia. Cerca de 12 mil pessoas passaram pelo Amazônia Brasil, entre julho e agosto. Agora, o evento segue para Europa.

Viva Favela - Qual o principal objetivo do Amazônia Brasil?
Eugênio Scannavino Netto -
As pessoas não têm noção do que seja a Amazônia real, ora a imaginam como uma floresta densa e inexplorada, ora a associam à devastação. Muitos ignoram o fato de que ali tem gente, de que ali vivem comunidades extrativistas, índios, pescadores artesanais, seringueiros, quebradores de coco, ribeirinhos, e toda sorte de pessoas que dependem da floresta para sobreviver, e sobrevivem sem destruí-la, de forma sustentável. São exatamente essas comunidades que podem salvar a Amazônia. É só observar que onde tem comunidade extrativista, a floresta está preservada. Eles tiram tudo dali: palha para usar na casa, alimentação, remédio, óleo, borracha, e não têm a cultura do desperdício. Então, a proposta do Amazônia Brasil foi voltar o olhar do brasileiro para essa realidade, buscar parcerias e fazer com que o maior número de pessoas ajude as comunidades extrativistas a viabilizar a chamada "economia da floresta em pé" - muito mais lucrativa a longo prazo do que a economia da floresta derrubada.

O que ficou do intercâmbio, promovido durante o Amazônia Brasil, entre jovens da Amazônia e de centros urbanos como Rio e São Paulo?
Em São Paulo (onde o evento foi realizado antes) foi feita a Carta dos Jovens pela Amazônia, o Meio Ambiente e a Paz Mundial, entregue em Joanesburgo, África do Sul, durante a Rio + 10. No Rio de Janeiro foi estabelecida uma rede de comunicação entre os jovens da Amazônia e de projetos sociais cariocas, como os da Fundação São Martinho, Observatório de Favelas, Projeto Jovens do Futuro, FARCs (Federação de Rádios Comunitárias), entre outros. Esses jovens documentaram o evento, montaram uma agência de notícias (Amazônia On-line: www.amazoniabr.net). Os jovens da Amazônia presentes no evento do Rio conheceram o Morro Dona Marta e ficaram impressionados com a maneira como se vive numa favela, eles não entendem muito a questão da violência. A idéia é que mantenham esse intercâmbio via Internet pelo e-mail suruaca@saudeealegria.org.br – contamos com dois telecentros comunitários com esse propósito. Em 2005 começa a agenda européia do Amazônia Brasil e, como será o ano do Brasil na França, nós estaremos lá para buscar apoio e divulgar o projeto.

Como vivem as comunidades amazônicas, qual a infra-estrutura?
O quadro social na Amazônia é péssimo, não há circulação de moeda, a economia é feita com base na exploração de madeira e soja, por grileiros, fazendeiros, garimpeiros. É muito cruel. Os produtos de lá, feitos pelas comunidades extrativistas, não são aproveitados. Nas cidades existem grandes favelas ocupadas por extrativistas que foram perdendo terra para pecuária, por exemplo, e também por outras pessoas expulsas da própria terra. Essas comunidades não têm acesso à saúde, à educação, ao crédito. Conhecemos, por exemplo, um ribeirinho de Santarém (PA) que desejava montar uma marcenaria para trabalhar com restos florestais mas não tinha dinheiro para comprar um prego ou serrote. Ele ia tentar a vida na cidade mas fizemos microcrédito e ajudamos ele a comprar o que precisava e abrir a marcenaria na sua própria comunidade.

É comum ver pessoas temendo a internacionalização da Amazônia...
Muitos pensam que a Amazônia é ameaçada exclusivamente por estrangeiros, mas não, são os garimpeiros do sul e do sudeste, são os pecuaristas do sul, somos nós, brasileiros, que constituímos a ameaça. Temos que assumir essa responsabilidade e "amazonizar" o Brasil. Caso isso não aconteça, será que o mundo vai assistir passivo à gente detonando o "pulmão mundial"? Só para citar um exemplo, o maior consumidor de madeira ilegal da Amazônia é o estado de São Paulo. Vale lembrar que 90% da extração de madeira é feita de maneira predatória e apenas 10% de forma sustentável. Mas o processo de extração sustentável é mais caro e não consegue competir com o ilegal. Por isso, é preciso dar incentivo aos processos sustentáveis. A estratégia de preservação é social, e quando falamos em questão social, sobretudo na Amazônia, falamos em meio ambiente. Ao dar condições para que as comunidades extrativistas se mantenham na floresta, estaremos colaborando para a preservação.

Existem muitas organizações atuando na Amazônia para fortalecer as comunidades nativas?
Existem cerca de 550 projetos sendo implementados em diversas áreas: agricultura agroflorestal, manejo madeireiro sustentável, caça e pesca, ciência e tecnologia, entre outros. Nós já sabemos o que tem de ser feito, mas a questão é que a tecnologia está pulverizada em experiências localizadas. A idéia é divulgar essas experiências para que possam influenciar políticas governamentais.

O que vocês encaram como os principais problemas ambientais na região?
Entre os principais problemas está a devastação causada pela soja e pela pecuária (que provocam o corte raso da vegetação), a grilagem de terra (ocupação ilegal para cultivo de soja e pecuária) e também a contaminação das águas. Nenhuma cidade da Amazônia tem sistema de tratamento de esgoto. O lixo - inclusive o hospitalar – é jogado nos rios. As pessoas morrem por terem bebido água contaminada, a mortalidade infantil causada por esse motivo fica em torno de 70 por mil. Como problemas enfrentados, também posso destacar as queimadas, a pesca predatória e o garimpo, que contamina a água com mercúrio.

E qual a solução?
A Amazônia precisa de medidas muito simples. Por exemplo, para colocar cloro e tratar a água, o custo é de R$ 0,07 por família, um poço semi-artesiano para abastecer em torno de 30 famílias tem custo de aproximadamente R$ 500 e uma pedra sanitária (pedra que veda o buraco da fossa cavada e interrompe o ciclo de contaminação) representa um custo de R$ 7 por família. Essas medidas foram colocadas em prática nas 150 comunidades em que atuamos. Nesses locais, baixamos a mortalidade infantil de 70 para 23.3 em mil. Mas para adotar medidas simples como essas é preciso ter vontade política. São muitas as necessidades, como por exemplo dar incentivo às trocas regionais, criando mercado local para produtos da Amazônia e diminuindo a dependência de importação.

De que maneira se estrutura o trabalho do projeto Saúde&Alegria nas comunidades da Amazônia?
Começamos atuando em 16 comunidades, e agora já estamos em 150, fazendo um trabalho que envolve 30 mil pessoas na área da Floresta Nacional dos Tapajós, da Reserva Extrativista Tapajós e Arapiuns e no entorno (Unidades de Conservação situadas nos municípios de Santarém, Belterra e Aveiro). Contamos com uma equipe de 60 pessoas que mantêm contato por rádio com todas essas localidades e faz visitas sempre que necessário. Temos também um Conselho Intercomunitário, que conta com líderes de cada uma dessas comunidades. Nosso projeto é também de capacitação comunitária - a gente entrega a tecnologia mas eles têm que se apropriar dela. Há cerca de dois anos demos início ao projeto Saúde na Floresta nas comunidades em que atuamos, com financiamento do BNDES e outras parcerias. Trata-se de um amplo programa de higiene e saneamento. Atualmente, todas as comunidades contam filtros, cloro, poços artesianos (um sistema de bombeamento manual da água do poço perfurado). Estão sendo implantados sistema de abastecimento de água e também sistemas de energia solar nos centros comunitários (nos postos de saúde, escolas, barracão de reuniões e centros culturais).

Como é feito o trabalho de educação ambiental?
Fazemos trabalhos em seis núcleos de atuação – Organização Comunitária; Saúde Comunitária; Produção Agroflorestal e Meio Ambiente; Gênero Mulher Cabocla; Educação e Cultura, e Comunicação Popular e Juventude. Mas todo o trabalho da ONG é perpassado pela educação ambiental. Contamos com 150 repórteres rurais treinados pela Rede Mocorongo de jornalismo comunitário – constituída por jovens repórteres que produzem programas de rádio, vídeos e jornais comunitários. Isso é fantástico porque esse grupo recebe o material necessário para fazer um jornal que é difundido espontaneamente e cresce a cada dia. Esse trabalho valoriza o resgate da cultura e coloca esses jovens como protagonistas nas comunidades. Nós damos início e acompanhamos, mas são eles quem desenvolvem um verdadeiro processo de educação horizontal. Também desenvolvemos ações como formação de fiscais ambientais e monitores mirins, rearborização comunitária, combate ao fogo, campanhas como a de coleta de pilhas descartadas. Além de trabalhos de reciclagem de lixo no Circo Rebolixo – uma metodologia lúdica onde as crianças aprendem desde cedo os cuidados com o lixo e a necessidade de reciclar para fazer produtos, brinquedos e materiais didáticos.

O que representa o repasse de 107 mil hectares de terras da Flona (Floresta Nacional dos Tapajós), da União para o IBAMA?
Antigamente, o Ibama não aceitava a permanência das comunidades nessas terras acreditando que elas fossem nocivas à reserva florestal que ocupam. Mas acontece que a reserva foi criada numa área onde já existia morador, e foi uma luta fazer com que o governo aceitasse que esses moradores são os verdadeiros donos da floresta. Agora, passando da União para o Ibama, é possível fazer a concessão de uso dessas terras. A medida é importante para que continuem a existir áreas de florestas preservadas por essas comunidades, que vivem de maneira sustentável.

O que acha do projeto do governo federal de regular o acesso e uso dos recursos florestais?
Pode ser positivo ou muito negativo. Tudo vai depender da capacidade de fiscalização do governo. É melhor que uma empresa esteja trabalhando em área cedida pelo governo, passível de fiscalização, do que em uma área devoluta (sem documentação regular). Acho positivo colocar a floresta toda sob algum tipo de legislação especial. Vale lembrar que 23% do território da Amazônia é de propriedade privada, 3,55% são reservas e todo o resto são áreas devolutas. Ou seja, muitas são de comunidades que não têm documentos e por isso são invadidas por fazendeiros, grileiros. Se isso for regulado tem como fiscalizar, como penalizar, e assegurar permanência das comunidades tradicionais nessas terras.

Existe algum projeto no sentido de incentivar o engajamento de jovens brasileiros em trabalhos sócio-ambientais na Amazônia?
Os gestores – ONGs, escolas - teriam que estar mais capacitados para incentivar o jovem a buscar uma visão mais realista da Amazônia. Um índio que veio ao Rio por conta do Amazônia Br me perguntou: "Por que as crianças daqui, quando me encontram, fazem o som `uúúúú` e batem na boca?" Eu respondi que esse é o barulho dos índios dos filmes americanos. O índio brasileiro ficou triste ao saber dessa resposta. Infelizmente, não conheço trabalhos com o propósito mencionado. No Saúde&Alegria temos o projeto Bagagem (www.projetobagagem.com.br) destinado aos turistas que desejam conhecer a Amazônia mais de perto, de maneira mais realista, convivendo com as comunidades extrativistas, ribeirinhas, ficando hospedadas na casa dos povos nativos.

JULIA DUQUE ESTRADA
do site EcoPop

 
 
 

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