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escola da vida
13/09/2004

Refugiados aprendem a sobreviver no Brasil

Com ar provocador, o aluno dispara em um português hesitante: "Professora, o que quer dizer c...?" Rosângela Portela, 46, a professora, entendeu de imediato. O estudante, um jovem negro anglófono da África Ocidental, agora desterrado, estava testando-a.

"Eu respondi sem piscar. Repeti pausadamente a palavra e a traduzi para o inglês. Expliquei que se tratava de um palavrão que pessoas bem educadas não deveriam pronunciar. Perguntei, então, se ele havia compreendido", lembra a professora.

O rapaz, que nunca havia visto uma professora (em seu país só homens desempenham a função), que junto a isso nunca ouviu uma mulher "direita" se referir aos genitais masculinos, fez que sim e teve, dessa forma, sua primeira aula de cultura brasileira.

O episódio ocorreu na semana passada, em uma sala de aula no Sesc (Serviço Social do Comércio), no centro da cidade de São Paulo, onde começava mais um curso de português para refugiados de guerras e tragédias humanitárias, dentro de um programa de aculturação com o Brasil. Na ocasião, o jovem acabava de completar dez dias no país.

Um dentre 3.000 refugiados já reconhecidos pelo governo brasileiro, ele tem o perfil típico da categoria. É negro, sexo masculino, idade entre 20 e 30 anos, fugiu de guerra ou massacre na África, veio de navio, embarcado clandestinamente.

O jovem desafiador passou 13 dias no porão de um petroleiro de bandeira panamenha. Apavorado, com medo de ser descoberto (outro clandestino foi flagrado pela tripulação e desapareceu), ele chegou a ficar um dia inteiro mergulhado num tanque de óleo, apenas a cabeça para fora.

A assistente social Denise Orlandi Collus, 38, que cuida do programa para refugiados do Sesc, explica tamanho cuidado. "Entre os refugiados, contam-se histórias de clandestinos lançados ao mar porque os capitães das embarcações receavam ter de arcar com o sustento e eventual repatriação desses fugitivos.

Destino incerto
Desterrados por guerras inacreditáveis, que elevaram a tortura, a mutilação e o estupro à condição de métodos de combate, os 26 alunos da professora Rosângela já se consideram vencedores -"Estamos vivos, em um país pacífico e acolhedor", diz Baimba Conteh, 28, de Serra Leoa, sobre o Brasil.

Brasil que, diga-se, nenhum dos que veio de navio escolheu como lar. "A maioria não sabe sequer qual o destino da embarcação em que entram. Eles imaginam estar indo para os EUA ou Europa. Só quando ancoram percebem que o ponto final da viagem foi bem diferente", explica Luiz Varese, representante para o Brasil do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, a Acnur.

Expressando-se em inglês (a maioria), ou francês e espanhol, a atual leva de refugiados tem como primeira missão aprender português. "É incrível a velocidade do aprendizado deles", diz a professora, que também leciona português para executivos.

A maior facilidade desses africanos com o português, a professora atribui ao fato de eles serem expostos desde crianças a muitos sistemas lingüísticos: "Eles têm de saber a língua do antigo colonizador e a língua tribal própria. Nos países islamizados ou em via de, têm de saber ainda rudimentos do árabe usado nas rezas."

Ao chegar, pedem refúgio ao governo brasileiro. Enquanto a história de cada um é analisada (só casos de violação aberta dos direitos humanos ensejam a concessão do refúgio), eles recebem carteira de trabalho provisória e CPF. Então são encaminhados à Cáritas, uma organização não-governamental de assistência e proteção aos refugiados, que patrocina o convênio com o Sesc. Podem trabalhar, recebem alojamento e alimentação subsidiada, além de auxílio em dinheiro.

Adaptação difícil
A adaptação dos meninos é difícil. A professora lembra-se de um aluno nigeriano que viveu dias de euforia na chegada. "Depois de um mês, ele entrou em depressão severa. Percebeu que estava sozinho [perdeu todos os vínculos com parentes na África], que obter trabalho era complicado. Tivemos de ampará-lo seriamente."

Outro aluno envolveu-se com drogas e chegou a prestar alguns serviços como traficante para a máfia nigeriana que atua no centro de São Paulo. "Fizemos de tudo para que ele participasse de grupos de música, de teatro, além de ajudá-lo a arrumar trabalho", diz a professora.

O envolvimento de nigerianos com o narcotráfico piora a vida dos jovens refugiados. Freqüentemente confundidos com os traficantes, eles têm dificuldade extra na hora de arrumar um emprego.

"É preconceito. Esses meninos, quase todos, viram a família ser assassinada, têm uma história de dor e sofrimento e ainda são discriminados", diz a assistente social
Denise Collus. "Os traficantes não se apresentam à polícia federal para obter o status de refugiados e documentos brasileiros. Isso [a identificação] só serviria para torná-los mais facilmente localizáveis -tudo o que o traficante não quer."

Por precaução, Cezira Furtin, 57, coordenadora do Centro de Acolhida para Refugiados da Cáritas, organiza encontros de refugiados, duas vezes por semana, em que orienta os jovens sobre os direitos e deveres no Brasil. "É uma aula em que, basicamente, dizemos a eles: "Presta atenção, rapaz.'

No Sesc, a professora Rosângela esforça-se para fazer os refugiados entender o país que os acolheu. "Passo para eles e discuto uma série de documentários sobre o povo brasileiro, sua formação e índole. É incrível ver os olhos deles se iluminarem ao perceber o tanto que a África impregna a vida brasileira", diz.

Na semana passada, os alunos da professora foram levados até o teatro da Pontifícia Universidade Católica, no bairro de Perdizes, para assistir a "Turistas & Refugiados", peça sobre o drama dos desterrados.

Eles riram muito na cena em que o ator Carlos Moreno falava sobre as fantasias sexuais de um turista em férias, um momento delicioso do roteiro. Na hora, porém, em que os atores interpretavam os refugiados do título da peça, fecharam-se os semblantes dos meninos.

Todos os atores brancos, representados com famílias e malas, trajando figurinos antiquados lembrando europeus em fuga do nazismo, eram o retrato em negativo dos jovens que os assistiam -solitários, chegados sem malas nem suvenires. "Mas o buraco que ficou na vida deles, imagino, deve ser o mesmo que eu sinto", dizia ao fim do espetáculo um aluno congolês, que fugiu depois de ter o pai assassinado e a mãe seqüestrada (ela até hoje está desaparecida). Primogênito em uma família numerosa, o rapaz sabia: "O próximo seria eu."


LAURA CAPRIGLIONE
da Folha de S.Paulo

 
 
 

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