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desarmamento
13/09/2004

Crianças desistem de brincadeira com armas artesanais

Na tarde do último sábado de agosto, depois de uma manhã de intenso tiroteio, mais de 40 meninos passavam pelo alto do Laboriaux, na Rocinha, zona sul carioca. Todos 'fortemente armados' com fuzis de canos de PVC, pistolas de cabo de vassoura e até metralhadoras de plástico com mira a laser. Mas essa tradicional brincadeira de guerra, que inclui perigosos 'tecos' de milho, pode estar com os dias contados. Diante da onda de destruição de armas que tomou conta do país, alguns desses meninos - com idades entre cinco e 11 anos - vão aderir ao movimento. E entregar voluntariamente parte desse arsenal no posto da campanha de desarmamento que será aberto na sede da TV Roc (a TV comunitária da Rocinha), em São Conrado, neste sábado, 11.

Entre o tal confronto “armado” - com que os meninos reproduziam a realidade violenta com que são obrigados a conviver - e a adesão à campanha pacifista, houve uma conversa com o presidente da Associação de Moradores do Laboriaux.

"Rendi três meninos do grupo e fiz um discurso antiarmamentista, convencendo-os a me entregarem as armas. Quinze minutos depois eu estava com 18 daquelas pistolas na mão e a promessa de que todas as outras existentes na comunidade me serão entregues até 12 de outubro, Dia das Crianças”, conta Carlos Costa, também coordenador da área de Segurança Pública e Direitos Humanos do Viva Rio.

Tudo 'na moral'
Se no Rio de Janeiro, só em agosto, mais de seis mil armas já foram entregues aos postos da campanha oficial de desarmamento por cariocas preocupados em tornar a cidade menos violenta - cerca de mil somente no posto do Viva Rio -, na Rocinha, o espírito pacifista não está sendo muito diferente. Dias mais tarde, Costa continuava recebendo Bob Teco - que é como se chamam essas armas artesanais. Já tem mais de 20 recolhidos na sede da associação de moradores.

Boa parte delas entregues pelo empenho de Everson Silva Andrade Mendes, um garoto esperto de 11 anos que mora na área conhecida como Mata, no alto da Rocinha. Sensibilizado com o discurso de Costa, ele e os amigos mais chegados, Jorge Luís dos Santos, 15, e Wesley Oliveira da Silva, 10, passaram a tentar convencer companheiros e adversários de brincadeira a um armistício. Segundo afirmam os três, tudo é feito “na moral”, apenas no papo.

Como qualquer cidadão preocupado com o risco que as armas representam, os meninos passaram também a pesar o perigo que mesmo aquelas pistolas de mentirinha podem significar.

“Já vi garoto ficar com um teco de milho preso na perna. Ele teve que puxar e sangrou muito. Até eu já levei um teco no canto do olho. Dói muito. E, se pegar, pode até cegar”, admite Everson. Ele confessa que o tiro tão perto do olho também contribuiu para fazer com que mudasse de brincadeira. E a experiência agora é usada como argumento para convencer os mais relutantes a entregar o arsenal.

“Chego para eles e pergunto se é preciso esperar acontecer alguma coisa mais séria com um menino para parar com isso”, diz Everson, desenvolto. Nem sempre a conversa é vista como séria e os garotos de grupos adversários costumam revistá-los para ter certeza de que eles não estão apenas tomando as armas de graça. Quando todos os argumentos falham, Everson não tem dúvidas. Procura as mães para uma conversa. O que tem dado ainda mais certo. “Geralmente, os pais não gostam dessa brincadeira e tomam os Bob Tecos”, diz.

De jaqueta e touca
No que depender de Everson e sua turma, agora inteiramente adeptos do desarmamento, as armas da Mata permanecem banidas. “Agora só tem Bob Teco da área do Flip pra baixo”, garantem. E eles sabem muito bem o destino que querem para todo esse armamento. “Acho que tudo deve ser demolido, e os pedaços que sobrarem devem ir pro lixo”, fala Everson, com a concordância dos amigos. Em vez dos conflitos "armados", a rivalidade com os garotos da Vila passou a ser resolvida nos campos de futebol da comunidade. Com o incentivo de Carlos Costa.

Tudo isso tem trazido sossego a Rosineide Silva Andrade, 37 anos, mãe de Everson e de mais seis outros filhos. Ela agora vê deixadas em paz suas latas de feijão e os canos de PVC com que o marido está ampliando as instalações de água da casa.

“Graças a Deus, eles pararam com isso. O Carlinhos da associação nem sabe, mas interrompeu uma guerra entra os garotos aqui da Mata e os da Vila. Era uma perturbação esses meninos correndo por todo canto, de noite, de jaqueta e touca, gritando e repetindo toda aquela gíria que eles ouvem por aí. Chegava a ser apavorante”, lembra sem saudade.

A preocupação de Dona Rosineide e de outras mães era enorme. Além do risco dos filhos saírem feridos por caroços de milho e feijão, projetados com toda pressão por pedaços de borracha, ver também como a brincadeira reproduzia em minúcias o comportamento dos homens do tráfico parecia, no mínimo, inquietador. “Eu tinha medo. Eles pareciam mesmo uns bandidinhos e tudo aquilo era como um incentivo. Num dia, eles estão atirando com Bob Teco; no outro, quem sabe não estariam com armas de verdade?”, teme.

A guerra entre Vila e Mata
Mãe de dois meninos, Dona Josefa Cecília Lima, a quem todos chamam Raminha, também é testemunha de que as coisas ali na área da Mata mudaram. Os Bob Tecos foram todos aposentados - ela espera que definitivamente. “Meus filhos eram doidos por isso. Mas não chegaram a fazer nenhuma arma porque quando meu marido viu um deles cortando cano, tomou tudo e deu a maior bronca”, conta. Ela atesta ainda os esforços da turma de Everson, Wesley e cia. no desarmamento dos demais. “Eles são bons meninos. E agora isso aqui anda calmo”, diz.

Se nas últimas semanas reina a calma, a situação já foi bem diferente. Embora para os garotos tudo não passe de uma grande brincadeira, a guerra entre as turmas da Mata e da Vila, ou entre os vários grupos de outros cantos da Rocinha, imita os confrontos entre os bandos do tráfico. A idéia é invadir o território dos adversários, tomar-lhes as armas. A rixa também transformava a passagem por certas áreas da comunidade – como na ida ou volta para a escola -, em risco de levar saraivadas de tecos.

“Às vezes, a gente conseguia fazer um refém e fazia ele nos dizer onde ficava escondido o armamento deles e pegava tudo”, conta Wesley. Ele e Jorge também falam de episódios em que os garotos surpreendidos pelos grupos adversários eram amarrados, obrigados a tirar a camisa e alvejados com muitos tecos. A maior parte dos confrontos aconteciam à noite, como provam as lâmpadas de vários postes da Mata, quebradas pelos disparos. “A gente se reunia numa laje daqui, para atirar nos outros”, confirma Jorge.

Réplicas quase perfeitas
Como todo o armamento é produzido artesanalmente, o próprio Everson e sua turma admitem que procuravam imitar o mais fielmente possível as armas que viam. As duas que Everson entregou ao presidente da associação de moradores, por exemplo, eram uma “12”, de quatro canos, que permitia disparar mais rapidamente caroços de feijão nos “alemão” da Vila, área da favela um pouco abaixo da Mata, com quem os garotos disputavam territórios no Bob Teco. A outra era uma pistola. Ambas de canos de PVC, envoltos em fita isolante preta, para ficarem o mais reais possível.

Tudo isso só fazia crescer a preocupação das mães. “Imagine um policial, ou alguém armado, vendo o vulto desses meninos surgir de repente com um cano na mão? No escuro, quem ia pensar que era brinquedo?”, temia Dona Josineide.

Nesse ponto, a inventiva dos meninos não tinha limites. Dois ou mais canos, formatos que mais se aproximassem de fuzis, pistolas, metralhadoras, tudo eles inventavam. Valia até incorporar à arma uma daquelas canetinhas a laser, o que permitiria disparar com maior precisão os projéteis no escuro.

Para facilitar a recarga das armas, Everson chegou a criar uma novidade. Um furo feito com faca aquecida sobre o PVC possibilitava encher-lhe o cano com caroços, devidamente acondicionados na boca, sem tirar a arma da posição de tiro. Como se estivesse tocando flauta.

Arsenal lucrativo
Wesley, Everson e Jorge chegaram a se tornar prósperos negociantes do arsenal que produziam. “Vendemos mais de 50 armas, cada uma a R$ 1, R$ 0,50. A gente chegou a ganhar R$ 25. Tiramos R$ 5 para comprar mais bolas de encher - são elas que, esticadas, disparam os projéteis – e dividimos o resto”, contam Jorge e Wesley.

Para o presidente da associação de moradores, Carlos Costa, tudo isso impressiona. "Acho que talvez este espírito aventureiro de fabricar e guerrear com armas de PVC seja bem pior do que o volume de armas de verdade em poder do tráfico. E essa é uma realidade na maioria absoluta das favelas. Tem até fogueteiros mirins, crianças ainda menores, que “soltam” foguetes de pedaços de cabos de vassoura”, preocupa-se. Como alternativa, ele agilizou a implantação dos projetos esportivos de futebol e vôlei na área, que já contam com a participação de cerca de 160 meninos.

“Queremos discutir com eles o destino que deve ser dado às armas que continuam recolhendo. E mostrar a eles a importância de tudo o que estão fazendo”, fala Costa. Em seus planos, a idéia é ocupar a garotada também com programas de artes e educação ambiental. Antes disso, em conjunto com o coronel Jorge Braga, comandante do 23º Batalhão, estão sendo planejados passeios com os meninos por pontos turísticos da cidade. “O coronel já nos ofereceu transporte, a infra-estrutura do batalhão. Só falta marcar a data”, diz. Será uma forma de estimular a nova brincadeira, a do desarmamento.


VILMA HOMERO
do site Viva Favela

 
 
 

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