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15/01/2004
-
08h02
ANA PAULA DE OLIVEIRA
da Folha de S.Paulo
Geraldo Simões, 44, ama as rodas. Especialista em trânsito, trabalha em uma revista de automobilismo e ensina a guiar motos. Ironicamente, o único veículo motorizado que Simões vem pilotando há um ano é uma motoneta, que nem possui marchas e não passa dos 60 quilômetros por hora. Abdicar da paixão pelos "velozes e furiosos" para guiar uma lambreta tem motivo: "Não quero voltar à escola". Ele é um dos inúmeros motoristas que acumularam 20 pontos na carteira de habilitação, em 12 meses consecutivos, e resistem a ter de frequentar o temível Curso de Reciclagem para Condutores Infratores.
É um "intensivão" da pilotagem. Os alunos passam 20 horas dentro de uma sala de aula, distribuídas em quatro ou cinco dias, aprendendo o que teoricamente todo motorista deveria saber de cor e salteado. São quatro disciplinas e, no final de cada aula, há um teste. Quem for reprovado em três matérias é obrigado a fazer tudo novamente.
Para piorar a situação, no Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP), os professores são policiais militares fardados. "Isso intimida qualquer um. Uma das minhas multas foi aplicada por um PM. Já pensou ter de encarar aula justamente com quem me deu a "canetada'?", diz o biólogo M. D. C., 28, que somou 30 pontos na habilitação em menos de 12 meses.
Humilhação
Tanta resistência em voltar à escola de trânsito, explica o psicólogo José Roberto Leite, coordenador do setor de medicina comportamental da Unifesp, está associada ao valor implícito na punição. "Ninguém quer admitir que está errado, que não sabe dirigir, e ser obrigado a passar uma semana enfurnado em uma sala tendo aulas é humilhante. A auto-estima do condutor é empurrada para baixo", explica.
Mas o curso, cujo apelido menos assustador é escolinha de reciclagem, não é um bicho-papão e, queira o motorista ou não, todos lá são culpados, apesar de apenas uma minoria admitir isso.
"No começo, estava me sentindo humilhada. Hoje [terceiro dia], já me sinto melhor e até estou gostando. Aqui aprendi coisas que não foram ensinadas no meu tempo. Assim que recuperar minha habilitação, vou colocar em prática tudo que aprendi", afirma a vovó de uma das turmas, a dona-de-casa Lázara Marteli Acciari, 60.
Atitudes de agressividade logo nas primeiras horas de aula, segundo o advogado especialista em trânsito Carlos Alexandre Negrini Bettes, são comuns, já que ninguém está lá por que quer.
"Com o passar do tempo, os alunos criam uma certa intimidade uns com os outros e, geralmente, 99% dos infratores reconhecem a validade do curso", afirma Bettes.
A atmosfera da aula se torna mais leve graças às brincadeiras que os instrutores fazem ao longo do curso, que servem para quebrar o gelo e fazer com que os condutores dispam-se de suas armaduras e aproveitem o que está sendo ensinado.
Aliás, esse é o conselho que os especialistas dão para o momento de enfrentar o crivo da reciclagem. "Já que será obrigado a passar por isso, que seja da melhor maneira", orienta o major Vera Cruz, diretora da Divisão de Educação de Trânsito do Detran-SP.
Para a psicóloga Valquiria Coelho, especialista em trânsito, as mulheres aceitam com mais facilidade que os homens o fato de serem obrigadas a voltar à escola. "Pilotar um carro é sinal de virilidade; assumir que errou e que precisa passar por aulas de trânsito novamente é perder, insconscientemente, um pouco dessa masculinidade. Eles acreditam que fracassaram socialmente."
Como se esse sentimento de fracasso não fosse suficiente, os motoristas que precisam reaprender a dirigir enfrentam a gozação dos amigos.
"Meus amigos riram de mim quando disse que eu tinha de fazer o curso, mas eu expliquei que o problema é que eu estava no lugar errado [acima da velocidade], com o equipamento errado [sem capacete] e com a carteira errada [estava de moto, mas com permissão apenas para guiar carros]", conta o segurança Paulo Roberto da Silva, 25.
Medo da punição
Em uma pesquisa para averiguar o efeito das aulas de reciclagem, foi constatado que apenas 2% dos que frequentaram o curso violaram alguma lei de trânsito nos 12 meses que se seguiram ao curso.
O resultado pode ser considerado excelente, mas, mesmo assim, há quem questione a validade da escolinha. "Será que o motorista realmente reaprendeu as leis de trânsito ou apenas não quer mais se submeter à punição novamente?", questiona o psicólogo José Roberto Leite. Já Carlos Bettes, autor do estudo, acredita que as aulas sejam válidas e que transmitam informações desconhecidas por muitos motoristas.
Se o mecânico Edmilson de Souza Batista, 28, fosse mais bem informado, talvez sua carteira nem tivesse sido apreendida. Mas foi só no curso que ele soube que, ao vender um veículo, o documento deve ser transferido de dono o mais rápido possível. Somando 81 pontos na carteira --o recorde de sua turma--, ele garante não ser responsável por nenhum. "Vendi o carro e não transferi o documento. Agora aprendi a lição."
Outros alunos são mais resistentes à validade do curso. "Estar aqui não quer dizer que nunca mais vou cometer uma infração. Estou mais informada, mas nada impede que eu tome outra multa novamente", diz a estudante Nádia Lúcidi, 25, que dirigiu rápido demais.
Multiplicadores
Além da reciclagem, a escolinha tem outro ponto positivo: os reciclandos passam a ser multiplicadores de conhecimento, levando para dentro de casa e do trabalho um assunto que normalmente não é discutido nem mesmo em mesa de bar. "Exceto em situações extremas, como acidentes de carro, as pessoas não falam sobre trânsito no dia-a-dia", afirma Bettes.
Boa parte dos motoristas que teve a carteira suspensa pelo órgão de trânsito recebe a "grande notícia" quando vai renovar a habilitação. A data de vencimento desse documento é próxima ao dia do aniversário. "Levei um susto quando fui renovar minha carteira e disseram que eu estava impedido de dirigir. Foi meu pior presente de aniversário", diz Batista.
Por mais desagradável que seja, o melhor a fazer é enfrentar o desafio e reconquistar o direito ao volante, aproveitando a oportunidade para aprender. Mas nada de ir correndo para a escola --pelo menos, não dirigindo.
Óbvio? Nem tanto. Em um dos primeiros cursos de reciclagem de Curitiba, o pátio do Detran-PR, geralmente vazio naquele horário, ficou lotado com os veículos dos alunos com carteira suspensa. Eles só não foram multados porque o instrutor deu o alerta, relembra Bettes.
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Escolinha do Detran "atemoriza" infratores
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Geraldo Simões, 44, ama as rodas. Especialista em trânsito, trabalha em uma revista de automobilismo e ensina a guiar motos. Ironicamente, o único veículo motorizado que Simões vem pilotando há um ano é uma motoneta, que nem possui marchas e não passa dos 60 quilômetros por hora. Abdicar da paixão pelos "velozes e furiosos" para guiar uma lambreta tem motivo: "Não quero voltar à escola". Ele é um dos inúmeros motoristas que acumularam 20 pontos na carteira de habilitação, em 12 meses consecutivos, e resistem a ter de frequentar o temível Curso de Reciclagem para Condutores Infratores.
É um "intensivão" da pilotagem. Os alunos passam 20 horas dentro de uma sala de aula, distribuídas em quatro ou cinco dias, aprendendo o que teoricamente todo motorista deveria saber de cor e salteado. São quatro disciplinas e, no final de cada aula, há um teste. Quem for reprovado em três matérias é obrigado a fazer tudo novamente.
Para piorar a situação, no Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP), os professores são policiais militares fardados. "Isso intimida qualquer um. Uma das minhas multas foi aplicada por um PM. Já pensou ter de encarar aula justamente com quem me deu a "canetada'?", diz o biólogo M. D. C., 28, que somou 30 pontos na habilitação em menos de 12 meses.
Humilhação
Tanta resistência em voltar à escola de trânsito, explica o psicólogo José Roberto Leite, coordenador do setor de medicina comportamental da Unifesp, está associada ao valor implícito na punição. "Ninguém quer admitir que está errado, que não sabe dirigir, e ser obrigado a passar uma semana enfurnado em uma sala tendo aulas é humilhante. A auto-estima do condutor é empurrada para baixo", explica.
Mas o curso, cujo apelido menos assustador é escolinha de reciclagem, não é um bicho-papão e, queira o motorista ou não, todos lá são culpados, apesar de apenas uma minoria admitir isso.
"No começo, estava me sentindo humilhada. Hoje [terceiro dia], já me sinto melhor e até estou gostando. Aqui aprendi coisas que não foram ensinadas no meu tempo. Assim que recuperar minha habilitação, vou colocar em prática tudo que aprendi", afirma a vovó de uma das turmas, a dona-de-casa Lázara Marteli Acciari, 60.
Atitudes de agressividade logo nas primeiras horas de aula, segundo o advogado especialista em trânsito Carlos Alexandre Negrini Bettes, são comuns, já que ninguém está lá por que quer.
"Com o passar do tempo, os alunos criam uma certa intimidade uns com os outros e, geralmente, 99% dos infratores reconhecem a validade do curso", afirma Bettes.
A atmosfera da aula se torna mais leve graças às brincadeiras que os instrutores fazem ao longo do curso, que servem para quebrar o gelo e fazer com que os condutores dispam-se de suas armaduras e aproveitem o que está sendo ensinado.
Aliás, esse é o conselho que os especialistas dão para o momento de enfrentar o crivo da reciclagem. "Já que será obrigado a passar por isso, que seja da melhor maneira", orienta o major Vera Cruz, diretora da Divisão de Educação de Trânsito do Detran-SP.
Para a psicóloga Valquiria Coelho, especialista em trânsito, as mulheres aceitam com mais facilidade que os homens o fato de serem obrigadas a voltar à escola. "Pilotar um carro é sinal de virilidade; assumir que errou e que precisa passar por aulas de trânsito novamente é perder, insconscientemente, um pouco dessa masculinidade. Eles acreditam que fracassaram socialmente."
Como se esse sentimento de fracasso não fosse suficiente, os motoristas que precisam reaprender a dirigir enfrentam a gozação dos amigos.
"Meus amigos riram de mim quando disse que eu tinha de fazer o curso, mas eu expliquei que o problema é que eu estava no lugar errado [acima da velocidade], com o equipamento errado [sem capacete] e com a carteira errada [estava de moto, mas com permissão apenas para guiar carros]", conta o segurança Paulo Roberto da Silva, 25.
Medo da punição
Em uma pesquisa para averiguar o efeito das aulas de reciclagem, foi constatado que apenas 2% dos que frequentaram o curso violaram alguma lei de trânsito nos 12 meses que se seguiram ao curso.
O resultado pode ser considerado excelente, mas, mesmo assim, há quem questione a validade da escolinha. "Será que o motorista realmente reaprendeu as leis de trânsito ou apenas não quer mais se submeter à punição novamente?", questiona o psicólogo José Roberto Leite. Já Carlos Bettes, autor do estudo, acredita que as aulas sejam válidas e que transmitam informações desconhecidas por muitos motoristas.
Se o mecânico Edmilson de Souza Batista, 28, fosse mais bem informado, talvez sua carteira nem tivesse sido apreendida. Mas foi só no curso que ele soube que, ao vender um veículo, o documento deve ser transferido de dono o mais rápido possível. Somando 81 pontos na carteira --o recorde de sua turma--, ele garante não ser responsável por nenhum. "Vendi o carro e não transferi o documento. Agora aprendi a lição."
Outros alunos são mais resistentes à validade do curso. "Estar aqui não quer dizer que nunca mais vou cometer uma infração. Estou mais informada, mas nada impede que eu tome outra multa novamente", diz a estudante Nádia Lúcidi, 25, que dirigiu rápido demais.
Multiplicadores
Além da reciclagem, a escolinha tem outro ponto positivo: os reciclandos passam a ser multiplicadores de conhecimento, levando para dentro de casa e do trabalho um assunto que normalmente não é discutido nem mesmo em mesa de bar. "Exceto em situações extremas, como acidentes de carro, as pessoas não falam sobre trânsito no dia-a-dia", afirma Bettes.
Boa parte dos motoristas que teve a carteira suspensa pelo órgão de trânsito recebe a "grande notícia" quando vai renovar a habilitação. A data de vencimento desse documento é próxima ao dia do aniversário. "Levei um susto quando fui renovar minha carteira e disseram que eu estava impedido de dirigir. Foi meu pior presente de aniversário", diz Batista.
Por mais desagradável que seja, o melhor a fazer é enfrentar o desafio e reconquistar o direito ao volante, aproveitando a oportunidade para aprender. Mas nada de ir correndo para a escola --pelo menos, não dirigindo.
Óbvio? Nem tanto. Em um dos primeiros cursos de reciclagem de Curitiba, o pátio do Detran-PR, geralmente vazio naquele horário, ficou lotado com os veículos dos alunos com carteira suspensa. Eles só não foram multados porque o instrutor deu o alerta, relembra Bettes.
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