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27/05/2002 - 08h06

Em Daegu, cachorro vale o que pesa

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MÁRIO MAGALHÃES
enviado especial da Folha a Daegu

Totó está feliz. Balança o rabo quando o estranho se aproxima. Late um pouco. Totó nasceu, se muito, há seis meses. É peludo e alvinegro: um pouco mais branco do que preto. Divide uma gaiola com outro filhote, talvez da mesma ninhada. A dona dos cachorros exibe a gaiola e propõe: 2.000 wons, R$ 4, por unidade. Não é desta vez que se desfaz deles.

A carne de filhotes de cães é apreciada pelos "connaisseurs" devido à textura macia. Quem prefere cachorros maiores tem uma vasta oferta nas lojas vizinhas. Dezenas dormitam em gaiolas que vão de variantes filigranadas das de passarinhos até outras maiores, como a jaula de um cão que parece um urso.

Nenhum vai virar animal de estimação, ganhar nome, casa e coleira. Ser "o melhor amigo do homem". Seu destino é a panela ou, menos comum, o forno e a grelha. A carne de cachorro é a quarta mais consumida na Coréia do Sul. Perde para porco, boi e frango.

São 10h34 no mercado de Chilsung, em Daegu, a terceira cidade mais populosa do país. Com 2.524.253 habitantes, fica 297 km a sudeste da capital, Seul. O estádio de Daegu, construído para a Copa com a cobertura inspirada na arquitetura dos telhados das tradicionais casas coreanas, vai receber quatro partidas.

Em Chilsung, o sol da primavera é fortíssimo, embora a temperatura não ultrapasse os 24ºC. O movimento, intenso mais cedo, escasseou. Aumentará para o almoço, uma fartura de frituras.

Vivos, além de cães, há animais à venda para paladares diversos: gatos, cuja sopa tem apreciadores vorazes, rãs, enguias, peixes, crustáceos, tartarugas, patos, galinhas. Porcos são vendidos mortos _crus, cozidos ou assados.

Reações, de dedo estendido a ordens de expulsão, só ocorrem quando a câmara fotográfica mira os cães e a única gaiola de gatos do complexo de ruelas claustrofóbicas que compõe o mercado. Só a dona de Totó não se opõe.

Numa loja, os latidos provocados pela presença do estranho acordam um homem, que grita para o intruso sair. Há dois motivos: a venda e o consumo de carne de cachorro são proibidos. E boa parte dos coreanos não suporta mais o que considera lenga-lenga do Ocidente contra um hábito ancestral, de pelo menos 1.500 anos.

O barulho é tamanho que em 1988, às vésperas da Olimpíada de Seul, o governo cedeu à pressão de organizações esportivas e de defesa dos animais européias e norte-americanas e baniu os cães do cardápio nacional. A lei não pegou, a tradição se impôs.

O grosso dos cachorros _cerca de 85%_ não é criado como animal de estimação. A produção abastece restaurantes e residências e serve como matéria-prima de um tônico medicinal.

Na semana passada, o jornalista Park Moo-jong, editor do jornal de Seul "Korea Times", publicou um artigo furibundo, no mesmo dia em que conversou com a Folha: "O que os críticos estrangeiros precisam entender é o fato de que os coreanos não comem cães de estimação. Eles não cozinham poodles, dálmatas, yorkshire terriers, são bernardos, buldogues, chihuahuas ou spaniels. Fazendeiros criam cachorros do mesmo jeito que porcos, vacas e carneiros são criados para abate".

Não é apenas o sabor da pushingtam, a sopa consagrada como o prato ideal à base de cachorro, que anima a dieta coreana. O alimento combateria o reumatismo, regularia o sistema digestivo, ajudaria a controlar a pressão arterial e proveria energia, conforme sustentam manuais de medicina de mais de 500 anos e também incipientes pesquisas universitárias.

Para os homens, os grandes entusiastas da iguaria, seu trunfo é outro: seria potente afrodisíaco. Pior para o animal, quanto maior o sofrimento ao morrer, mais viril ficaria quem come sua carne. Por isso, muitos são mortos a pauladas, queimados, enforcados.

A maioria, em produção industrial, já seria abatida com choques elétricos, procedimento usual com gado. Os restaurantes recebem a carne congelada. Em mercados públicos, o cachorro é vendido vivo para ser morto na casa ou restaurante do comprador.

"Achar que cachorro faz bem à saúde é coisa de gente ignorante", diz a comerciante Sunnam Kum. A menos de cinco quilômetros do mercado de Chilsung, ela mantém dois abrigos para cerca de 80 cães, gatos e animais "órfãos".

Fundadora da Sociedade Coreana de Proteção dos Animais, organização não-governamental que estima em 2,6 milhões os cães mortos anualmente com fins culinários. Abraçada a cachorros e gatos, diz: "Veja os olhos deles. Como pode haver gente tão cruel comendo esses bichinhos?".

Não é pouca gente. Levantamento de julho do ano passado feito pelo Centro de Pesquisas Coreano com 500 pessoas de mais de 20 anos mostrou que 52% dos entrevistados já experimentaram cachorro _entre as mulheres, 31%. E 28% haviam comido no ano anterior. "O pior é que agora muitas mulheres estão acreditando que faz bem para a pele."

No mercado de Chilsung, em liquidação por R$ 4, Totó não tem boas perspectivas. Parece faltar pouco tempo para o filhote trocar a gaiola pela panela.

Leia mais: Copa do Mundo-2002
 

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