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21/12/2009 - 12h25

Romário começou a gostar de futebol ouvindo Garotinho; leia trecho de livro

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da Folha Online

José Carlos Araújo, o Garotinho, da rádio Globo, é um dos poucos membros da imprensa que pode dizer que trabalhou em duas partidas que resultaram em dois "milésimos gols". Em 19 de novembro de 1969, ele viu Pelé alcançar a marca de uma posição privilegiada no Maracanã, atrás do gol de Andrada, que não conseguiu pegar o pênalti do rei. Na época, ele trabalhava como repórter de campo e passava as informações mais quentes e os detalhes da partida para Waldir Amaral.

Já em 20 de maio de 2007, dia em que Romário marcou o seu polêmico milésimo, Garotinho estava na cabine do Estádio de São Januário no comando da transmissão e entrou para a história narrando o gol. Aliás, o próprio baixinho admitiu depois que passou a gostar de futebol ouvindo a voz de Araújo ecoar pelo rádio de sua casa.

Essas e outras histórias são contadas no livro "Paixão Pelo Rádio" (Maquinária Editora). O autor, o jornalista Rodrigo Taves, esmiúça a carreira de um dos mais consagrados locutores do país e apresenta histórias de bastidores que misturam a magia do rádio com a paixão pelo futebol.

Leia abaixo um pequeno trecho da publicação.

-

Aos 34 minutos do segundo tempo, Pelé recebeu o lançamento de Clodoaldo, entrou na área e foi derrubado pelo zagueiro Fernando, do Vasco. Era o momento mais esperado pelo mundo do futebol em 1969: Pelé, já bicampeão do mundo em 1958 e 1962, estava a instantes de fazer seu milésimo gol, em pleno Maracanã. Pela Rádio Globo, o consagrado Waldir Amaral logo percebeu que, dali em diante, aquela narração entraria para a História. Gritou "pênalti" quatro vezes e passou rápido para o locutor que estava atrás do gol defendido pelo arqueiro Andrada, à esquerda das cabines de rádio: "Em cima do lance que pode ser o milésimo gol, Zé Carlos!"

Com pouco mais de cinco anos de carreira no rádio esportivo, José Carlos Araújo, ainda muito longe de ser conhecido pelo apelido de Garotinho, fazia, naquele jogo, o trabalho de ponta, como são chamados os que ficam atrás dos gols passando as principais informações sobre os lances. Ele começou a descrever a confusão que se seguiu:

Divulgação
Livro conta a trajetória de José Carlos Araújo, o eterno Garotinho
Livro conta a trajetória de José Carlos Araújo, o eterno Garotinho

"Pênalti de Fernando em Pelé. Quando agora Eberval vem conversar com o Rei, o árbitro também. É acossado de perto por Fernando, por Renê, também pelo arqueiro Andrada, mas acontece que o pernambucano marcou. Pelé está tranquilo, vai discutindo com Adilson, que também veio encarar. A bulha está formada, com jogadores do Vasco cercando o Manoel Amaro."

Enquanto falava, José Carlos foi interrompido duas vezes pelo repórter Denis Menezes, um amigo que depois o acompanharia em grande parte da carreira. Denis gritou "Pelé bate! Pelé bate!", até ser chamado a intervir na transmissão:

- Pelé bate, segundo instruções de Antoninho, que grita para Lima levar o recado. Pelé para a cobrança do pênalti...

José Carlos voltou com uma informação importante:

- Fidélis está fazendo buracos na marca do pênalti para que Pelé perca...
- A torcida no estádio em coro pede "Pelé, Pelé, Pelé!" - disse Denis, empolgado.

Waldir reassumiu o comando e pediu a opinião do ex-árbitro Gama Malcher, o comentarista de arbitragem da Globo.

- O pênalti foi claro, indiscutível, Pelé ia fazer o gol quando foi calçado, Waldir. Nada mais a acrescentar.

Com sua voz inconfundível, que ecoava no Maracanã em jogos de casa cheia como aquele, Waldir Amaral começou então a usar o texto que tinha preparado para aquele momento. Ele sabia que a audiência estava estourando. Só no estádio, havia mais de 100 mil pessoas (cerca de 65 mil pagantes) na expectativa pelo gol mil. O jogo era no Rio, mas parecia que a torcida era toda santista. Ninguém torcia pelo sucesso do argentino Andrada, o excelente goleiro do Vasco. O jogo estava 1 a 1 e o gol de pênalti, quase certamente, decretaria a derrota do time carioca. Mas seria difícil encontrar naquele estádio quem se importasse com isso.

- Há uma multidão de fotógrafos, locutores, cinegrafistas atrás do gol de Andrada. O estádio quer Pelé. O maior estádio do mundo quer o maior jogador do mundo, quer o seu deus para a cobrança! Pelé está aí com o gol do século aos pés!
- Waldir?

Naquela primeira interrupção, já era possível perceber toda a impaciência do narrador pelo tom de voz:

- O que há Zé Carlos?
- Ele apenas abraçou o Andrada. Pelé abraçou Andrada e agora vai conversar com Fernando, explicando como foi o lance. Mas a verdade é que, quando a bulha estava formada em torno do árbitro, Fidélis esburacou mais ainda a marca do pênalti. Pelé ajeita e a bola não ganha equilíbrio de jeito nenhum. Já correu, vai o árbitro corrigir novamente. A cratera está formada e não é na Lua não!

Waldir retomou a transmissão do lance:

- A pelota é ajeitada, à exceção do arqueiro Agnaldo, do time do Santos, toda a defesa vem para o meio do campo. Está aí o momento mais emocionante do futebol em 1969. É o gol do século que está para aparecer, o gol do deus do estádio, o milésimo gol de Pelé. Atenção...
- Maracanã de pé, hein...

Waldir Amaral não conseguiu resistir a mais uma interrupção num momento tão importante como aquele. Na transmissão que entrou para a história e foi repetida centenas de vezes nos anos e décadas seguintes, José Carlos Araújo leva uma bronca no ar:

- Um momento! Vamos à narração do gol, nada mais até o chute de Pelé... Prepara-se Pelé para a cobrança, estático o arqueiro Andrada, vai lá o juiz conversar com ele, manda que um cinegrafista, um fotógrafo se retire do campo. Expectativa emocionante no Maracanã, no Brasil e no mundo. Pelé, a segundos do gol do século. Atenção, caminhou Pelé, chutou, é gooollll! Goooollll de Pelé! Pelé, mil gols! Pelé, o mundo a seus pés! Andrada é o arqueiro do Rei. Pelé, milésimo gol, Pelé, o deus do estádio, Pelé, o gol do século! Tem mil nas redes de Andrada...

Em 2008, quase quarenta anos depois daquela transmissão no Maracanã, Garotinho ouve mais uma vez a gravação, sem interrupção e sem cortes, durante uma palestra para alunos da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, e se recorda do que aconteceu naquele 19 de novembro de 1969, meses antes do tricampeonato do Brasil no México, em 1970.

"Waldir Amaral estava muito nervoso, muito nervoso mesmo. Eu não tinha noção, naquele momento, de que estava entrando para a História, mas Waldir tinha se preparado, com seus improvisos entre aspas, para fazer um baita depoimento que ia ficar como depoimento histórico. Eu, na ânsia de dar mais detalhes, disse: 'Fidélis está esburacando, fazendo crateras na marca do pênalti, e não é na Lua não.' O homem tinha chegado à Lua. Era uma novidade, um fato inusitado."

Hoje, porém, depois de narrar mais de 3 mil jogos e cerca de 6 mil gols em 45 anos de carreira, tornando-se um dos mais importantes narradores esportivos do rádio brasileiro, José Carlos dá razão a Waldir. Diz que não fica tão nervoso como seu chefe ficou em 1969, mas está acostumado a cortar e atropelar os repórteres que demoram para dar informações. Ele adotou o lema "bola rolando, microfone na mão e gente falando" para repreender, no ar, os colegas que demoram a responder a seus chamados e quebram seu ritmo ligeiro de transmissão:

"Entro com o contra-ataque e atropelo para não perder o lance do gol. O maior gol contra é passar para outro estádio, o cara se alongar nas informações, e você perder o gol. É horrível. Eu atropelo a informação do cara, até não saindo o gol."

(...)

Naquele dia de 1969, porém, José Carlos logo voltou a ser chamado por Waldir para descrever a festa que se seguiu ao milésimo gol de Pelé, em pleno gramado do Maracanã. O jogo parou, Pelé deu a volta olímpica e foi no microfone de Garotinho - e de muitos outros radialistas - que ele fez aquele famoso discurso a favor das crianças brasileiras. José Carlos se recorda com detalhes do burburinho que se seguiu:

"Havia um batalhão atrás do gol. Eu me lembro que Waldir alongou e os repórteres invadiram o campo. A primeira a invadir foi Cidinha Campos, pela Rádio Jovem Pan. Ela entrou na rede, ainda com o Pelé beijando a bola, e foi entrevistando. Daí veio todo mundo em cima. Foi mais comemorado que o milésimo gol de Romário, por ser no Maracanã e por ter havido uma expectativa muito grande antes, muito maior até que a do Romário. Se a do Romário fosse no Maracanã, teria havido comemoração maior."

Pode-se dizer que José Carlos Araújo é um dos poucos da imprensa brasileira que pode fazer essa comparação. No dia 20 de maio de 2007, quando Romário fez o seu milésimo, Garotinho já não era o ponta atrás do gol. Quase 39 anos depois, ele estava na cabine do Estádio de São Januário, comandando a transmissão da partida pela mesma Rádio Globo, a emissora líder de audiência no Rio. Naquele momento, tinha narrado nove Copas do Mundo, de 1974 a 2006, e estava a ponto de bater o recorde de 3 mil jogos na carreira, o que conseguiu meses depois. A narração é mais moderna e usa gírias, mas é impossível não notar certa semelhança com a do mestre, em 1969:

- Chegou cortando Tiago Maciel, ele domina, vira na ponta-direita, é boa bola, a corrida na ponta-direita tentando Abedi, Abedi pelo time do Vasco tentando cruzamento, um fumacê tremendo aqui na frente, voltou a bola para Tiago Maciel, chutou, é pênalti! Pênalti contra o Sport! Na descida de Tiago Maciel pela direita, carimbou no braço de Bruno, o árbitro parou e marcou. Olha a chance do milésimo, galera! É Romário! É Romário! A galera pede. Ele vem lá de baixo buscando a bola. A galera se levanta, a galera se desloca, tá na hora do gol mil, fumacê anunciando, Eraldo Leite, o detalhe...

O experiente repórter Eraldo Leite, que participa de transmissões com José Carlos desde a década de 1970, é discreto ao corrigir o erro do chefe sobre o autor do pênalti:

- Durval fez o pênalti, Garotinho. Abriu o braço esquerdo para cortar o cruzamento de Tiago Maciel. Pênalti de Durval, zagueiro número quatro. Romário ajeita a bola e vai fazer o milésimo, Garotinho...

Em outras épocas, sem a TV para desmentir os erros dos locutores de rádio, um equívoco de Waldir Amaral e outros antecessores de José Carlos não seria revelado. Houve um tempo em que os pontas eram proibidos de desmentir os narradores. Os equívocos ficavam para a História. Garotinho, porém, prosseguiu a transmissão com naturalidade:

- Durval de pênalti, no toque de mão dentro da grande área. É a chance de Romário marcar o mil. Ele é o deus da área! Ele é o cara! É o baixinho de alto astral, é a cara do Rio. É o malandro carioca, marrento que nada! Ele trouxe toda essa galera para cá, o povo todo de pé, expectativa. É o gol mil, está na hora de sair... Correu Romário, deu a paradinha, atirou, entrou... Goooooooooooooooooooollll, do Machão da Gama, Ro, Ro, Romário! O gol mil saiu! O gol mil saiu! E todos os aplausos do Brasil para ele, Romário, é o deus da área, é o cara, é o baixinho de alto astral.

Além do texto escrito para enaltecer detalhes da personalidade de Romário, José Carlos tinha também, na ponta da agulha, uma gravação com Romarinho, filho do craque do Vasco. A intenção era emocionar o ouvinte: "Pai, parabéns pelo milésimo gol, você
merece." A essa altura, a família do artilheiro já está toda dentro do gramado, e Romário é cercado por uma multidão de microfones e câmeras. Garotinho continua:

- Valeu! Parabéns, parabéns pelo milésimo gol! Alô Romário, o gol mil saiu, palmas Brasil. Às 7:17h, com dois minutos do segundo tempo, o terceiro gol do Vasco contra o Sport. Romário, o gol mil saiu!

O repórter Rafael Marques entra para descrever a emoção no gramado, sem deixar o ritmo cair:

- Chorando! Chorando o Baixinho! Romário está chorando! Chega às lágrimas o consagrado atacante tetracampeão mundial. A emoção é muito grande aqui no gramado de São Januário!

É o próprio craque Romário, campeão mundial de 1994, o primeiro e único a ultrapassar a barreira dos mil gols depois de Pelé, quem faz a melhor tradução sobre a importância da longa carreira de Garotinho para o futebol e o rádio esportivo brasileiros:

- Eu passei a gostar de futebol ouvindo o Garotinho. Ele sempre esteve presente na minha casa, através do rádio. Meus pais, meus tios e vizinhos se reuniam e tiravam o som da TV para ouvir a transmissão dele. No rádio, acho que é o maior locutor de todos os tempos.

*

"Paixão Pelo Rádio"
Autor: Rodrigo Taves
Editora: Maquinária Editora
Páginas: 224
Quanto: R$ 38,00
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 

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