Carlos Heitor Cony
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Capa do livro "O Primo Basílio", uma de suas principais obras, escrito por Eça de Queiroz, em 1878
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  Maria Adelaide Amaral
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  Conto - "Suave Milagre"
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  25.nov.1945
  Artigo
  Beatriz Berrini
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A crônica é como que a conversa íntima, indolente, desleixada, do jornal com os que o lêem: conta mil coisas, sem sistema, sem nexo; espalha-se livremente pela natureza, pela vida, pela literatura, pela cidade; fala das festas, dos bailes, dos teatros, das modas, dos enfeites, fala de tudo, baixinho, como se faz ao serão, ao braseiro, ou ainda de verão, no campo, quando o ar está triste.
(1876)
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CARLOS HEITOR CONY
A ilustre casa dos seguidores
de Eça de Queiroz


CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo

Anteontem, dia 16 de agosto, fez cem anos da morte de Eça de Queiroz. Não estou por dentro das comemorações deste primeiro centenário, cumpri modestamente a minha parte, numa palestra na Academia Brasileira de Letras, iniciando o ciclo de conferências que prosseguiu com erudita exposição de Josué Montello e que terá outros palestrantes, do Brasil e de Portugal.

Nenhum outro autor teve tanta popularidade, na primeira metade do século. Na minha infância, era comum ver nas ruas, nos bondes, nos trens alguém lendo um de seus livros. Lembro que fui cortar o cabelo na rua Rodrigo Silva, no centro da cidade, folheava a revista "Careta", que era obrigatória em todas as barbearias, salas de espera de médicos e dentistas.

Um homem grosso, quase careca, estava na cadeira ao lado, lendo um Eça. Volta e meia dava uma risada. Pelo visto, se distraía mais do que eu, que lia as piadas da mais conhecida revista de humor naquela época.

Outro dia, em tom baixinho, como que envergonhado, Evandro Lins e Silva me confessou que durante muitos anos lia Eça e não lia Machado de Assis. Só mais tarde, como tantos outros, inclusive eu, mudou de lado.

Por falar em outro dia, outro dia li um disparate impresso numa de nossas folhas. Alguém desejava elogiar Eça de Queiroz e informou que ele tinha muita coisa do Nelson Rodrigues.

Evidente que tinha, mas às avessas. Nelson é que tinha tudo do Eça, inclusive bordões que ele, com a diferença de uma geração, popularizou entre nós. "As cerdas bravas do javali", o "olho rútilo e o lábio trêmulo", o "há alguma coisa de vacum no lento escoar das multidões", são inúmeras as expressões que Nelson bebeu em Eça, sobretudo em Fradique Mendes -o heterônimo mais conhecido do autor de "Os Maias".

Além das frases textuais que Nelson incorporou em suas crônicas e confissões, muitos de seus personagens mais populares foram transposições bem-feitas da estupenda galeria de tipos criados por Eça. Onde Nelson revelou-se 100% original, buscando o sentido trágico do homem -e nesse ponto dando de goleada em Eça-, foi no teatro.

Mas ninguém melhor do que Eça, na língua portuguesa, soube captar o ser humano no seu ridículo, na sua fragilidade de barro. Faltou-lhe a profundidade, mas sobrou-lhe a exatidão pontual dos seus personagens, que, somados entre si, podem ser considerados como os mais representativos da ficção do século 19, nela se incluindo os ingleses, franceses e russos de gênio que penetraram mais fundo na condição humana, mas sem o mesmo brilho, sem a assombrosa instantaneidade dos tipos de Eça de Queiroz.

Ele próprio reconhecia que não tinha o que dizer, faltava-lhe a tese, sobrava-lhe porém o modo de dizer. E, assim como Nelson Rodrigues chupou-lhe alguns dos bordões, Eça fez o mesmo com os autores que admirava, principalmente Flaubert, Hugo e Dickens.

Dionélio Machado, autor de "Os Ratos", seguramente um dos maiores romances brasileiros, em artigo para o "Diário de Notícias" de Porto Alegre (29 de maio de 1932), pinçou em Dickens a famosa cena em que Dâmaso Salcede, desafiado por Carlos Maia para um duelo, borra-se de medo, solicita a intervenção de amigos comuns. Enojado, Carlos Maia diz que aceitaria uma carta de Dâmaso, pedindo desculpas e confessando que estava bêbado quando cometeu o agravo (um artigo num jornal de fofocas) que originaria o duelo.

Em "Mister Pickwick", talvez o melhor romance de Dickens -porque parece ser o único onde não há um órfão em primeiro plano-, temos uma cena exatamente igual, o desafio para um duelo, a obrigação da carta em que o desafiado pede desculpa ("a written apology, as an excuse") com a confissão final de estar "intoxicated".

Mas há o detalhe, pequenino, sutil, que faz a grandeza de Eça ser maior do que a originalidade de Dickens. Dâmaso aceita que o amigo de Carlos Maia, o João da Ega, escreva o rascunho da carta -que, em linhas gerais, é a mesma de Dickens. Dâmaso começa a copiar o texto, confessando sua infâmia, mas pára de escrever de repente. João da Ega teme que um raio de dignidade tenha varado o crápula. A confissão, naqueles termos, seria demais até para o maior canalha do universo. Mas a dúvida de Dâmaso é de outra ordem. Não decifrando bem a letra de Ega, ele pergunta se "embriaguez" se escreve com "m" ou com "n".

O exemplo serve para mostrar as duas faces da obra de Eça de Queiroz, a falta de originalidade e a formidável força do detalhe. Isso explica o fascínio que ela exerceu em seu tempo, que teve imitadores, e, como Renan e Anatole France, até hoje tem os seus devotos.

Seus livros continuam sendo dos mais reeditados, e seus romances são constantemente adaptados para o teatro, o cinema e a TV. Suas histórias perdem muito quando transpostas para a linguagem visual, pois o forte de Eça não é a trama, mas o uso magistral das palavras, sobretudo nos "cacos", pequenos detalhes que ele esparrama em seus textos. Um de seus personagens, o conselheiro Acácio, que é apenas um caco tamanho-família jogado numa trama de adultério, é o mais citado da novelística portuguesa. Pelo menos eu o cito quase todos os dias.

Artigo publicado na Folha de S. Paulo de 18/08/2000, na Folha Ilustrada.


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De cima para baixo: O chamado "clube dos cinco", em 1884: da esquerda para a direita, Eça, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro; Eça com a filha Maria, a primogênita; Eça com Ramalho Ortigão; e Eça com sua mulher, Emília.