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07/11/2002 - 22h12

Diretor de "Madame Satã" acha que filme quebra preconceito gay

MARCELO BARTOLOMEI
Editor de entretenimento da Folha Online

Viés é o que não falta a "Madame Satã". Ao menos para criar polêmicas, incitar críticas e até repensar o panorama atual. É com estes conceitos que o cineasta Karim Aïnouz, 36, quer levar seu primeiro longa-metragem aos cinemas a partir desta sexta-feira, dia 8, quando estréia em pouco mais de 20 salas de São Paulo, Rio e Belo Horizonte.

Para Aïnouz, que também participou da elaboração do roteiro de "Abril Despedaçado", de Walter Salles, "Madame Satã", que conta uma parte da vida do boêmio homossexual da Lapa carioca nos anos 30, ajuda a quebrar o preconceito gay. "O público vê os personagens como uma família. É o pai, a mãe, a filha e a empregada", afirmou o diretor.

"Madame Satã" não é um filme para todos. Cenas de sexo entre homens chocaram uma platéia de jornalistas quando o longa foi exibido em público pela primeira vez em Cannes, na França, no mais famoso e cobiçado festival de cinema do mundo.

Para o diretor, no entanto, o filme não é nem deve ser classificado como gay. "Ele é lésbico", brinca. As cenas, segundo Aïnouz, não são de sexo, mas de carinho e afeto, e mostram como o malandro Madame Satã se comportava na intimidade. "É totalmente contraditório. Eu quis mostrar o quanto seu personagem era transgressor."

Nas ruas da Lapa, Madame Satã era tido como criminoso, pervertido e perigoso, o que lhe rendeu várias prisões. Na vida real, ele era um retrato do Brasil dos anos 30 e de um Rio de Janeiro em ebulição, pré-Estado Novo.

Confira trechos da entrevista com o diretor Karim Aïnouz:

Folha Online - O filme "Madame Satã" produz sensações, é feito à flor da pele. Como vocês conseguiram este resultado?

Aïnouz -
Sempre foi muito importante para mim que ele fosse um filme visceral. O maior desafio, seja qual for o filme, é traduzir o seu conceito inicial para cinema, na imagem, no som, no diálogo, na interpretação, na decupagem e na maneira como você filma. Primeiramente, não era intencional fazer esta coisa à flor da pele. Eu tinha o desejo de fazer uma espécie de diário íntimo do personagem para poder entendê-lo e construir um retrato dele. Quando você trabalha com este princípio, a câmera fica muito próxima do personagem. São motivos acidentais e não. Filmamos num lugar muito exíguo.

Eu sempre quis fazer o filme em 16 mm: você tem um chassi maior, uma câmera mais leve e a possibilidade de chegar mais próximo do personagem, mas não era possível. Quando a gente fez em 35 mm, todos os desejos que eram naturais para a filmagem em 16 mm ficaram mais agudos. A câmera ficou mais perto do personagem.

A gente (direção de arte e fotografia), então, decidiu que o filme tinha que ter mais contraste que meios tons. As cores da época são mais pastéis e o filme não podia ser isso porque o personagem não é pastel. A gente trabalhou com um processo químico no negativo e com um resultado de alto contraste. Texturas ganharam muita precisão. E veio a coisa da pele.

É curioso e difícil fazer um filme com pele negra [o ator Lázaro Ramos, protagonista do filme, é negro]. Os filmes não estão balanceados para este tipo de cor. Mas, no copião, vi que a pele, ou melhor, o corpo, era o protagonista, mais do que o volume.

Além da pele, eu também quis transmitir um odor. Eu vi um filme que o John Walters na década de 70 em que ele distribuiu cartelinhas e um mapa para descascar as cartelinhas para cada cena, pois cada uma tinha um odor. Fiquei muito impressionado com isso na época e pensava que o Rio era um lugar tão fétido e perfumado ao mesmo tempo, úmido, não tinha esgoto, as pessoas usavam perfume e as roupas não eram adequadas... tem aquela coisa verde do Rio de Janeiro que entra em todo canto, parece uma secreção verde que entra nos espaços íntimos. Eu dizia para o pessoal que este filme deveria cheirar brilhantina. Tinha um pouco o desejo de tornar o cinema também uma experiência olfativa, que ele não é suposta a ter.

Folha Online - A intenção de levar pele e corpo ao filme também ajudou na escolha do Lázaro Ramos para protagonista?

Aïnouz -
Tem uma coisa do Lázaro que é muito curiosa. Ele é bem menor do que o que parece no filme, cinco vezes menor (risos). Tinha uma coisa de câmera... me disseram que ele estava forte... graças a Deus não dá para explicar esta transformação porque senão não teria graça fazer cinema.

Mas os personagens despertam curiosidade. Uma amiga minha me disse uma vez que existe um respeito e uma beleza com os personagens que não são supostos a existirem ali naquele ambiente tão sórdido.

Folha Online - Qual o seu conhecimento de Rio de Janeiro para fazer um filme sobre a boêmia da Lapa?

Aïnouz -
A primeira pergunta que me fazem é isso: é verdade que você nunca morou no Rio de Janeiro? Eu ia muito lá quando pequeno, com 12 ou 13 anos e tinha uma curiosidade de descobrir aquele local. Evidentemente fui me apaixonando pelo Rio no processo de pesquisa. Para mim era tudo muito novo, não é como se eu tivesse nascido no Rio e algumas coisas passassem desapercebidas pelo meu olhar.

Quando a gente entrou naquela casa que a gente filmou, eu disse que não poderíamos tocar naquele lugar porque tinha um lodo, que era exatamente o Rio de Janeiro, um lugar onde as coisas são fluídas, sem limites. Era um lugar de tantas fusões naquela época. Nunca ter morado no Rio me deu um frescor e ao mesmo tempo eu tive cuidado para que isso não se transformasse em algo exótico. Foi uma descoberta do Rio e uma curiosidade de entender algo que eu não entendia, da identidade carioca. Que cultura hegemônica do Brasil era essa? O filme tem um desejo quase antropológico de descobrir isso.

Folha Online - Em algum momento você pensou em dar um limite para as cenas de sexo homossexual?

Aïnouz -
O limite para mim nunca foi gráfico. Mais importante para mim era colocar o espectador numa situação de partilhar a intimidade do outro. Foi mais desafiador que ter cenas com fala ou não, se ver o ato sexual, a penetração... o mais importante foi não ter música, mas sim silêncio e os barulhos do corpo, os gemidos que o corpo emite no momento de prazer.

Eu fala para os atores que a gente tinha de ir até onde desse, sem ficar sugerindo o que fazer. Isso foi mais importante que o resultado. Quando você tem esta premissa você vai a lugares que não haviam sido planejados.

Isso nunca foi uma questão para o personagem também. Eu nem acho que estas cenas são gays, mas sim lésbicas. Mas o Madame Satã não era gay? Não, ele era pós-gay. Nestas cenas, eu queria brincar um pouco com o fato do que se espera de uma cena gay. Com o nome Madame Satã em uma cena gay, você espera que ele vá pegar o cara e jogar na parede, bater, pegar um tridente e forçar ele a fazer coisas que nunca fez na vida, muito sangue... Mas não é isso, é o que se espera de uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo. São relações amorosas e de afeto.

No fundo o que me interessava era demonstrar, mais do que se ele fazia sexo ou não, o quanto este personagem era afetuoso e como isso era transgressor em sua vida. Brincando, sempre malandro como o personagem, é possível quebrar o preconceito.

Existe o desejo de brincar o tempo inteiro. Ele é meio camaleão. Essas cenas foram desenhadas neste sentido. A sinceridade é super importante em cenas como estas.

Folha Online - Vocês ensaiaram as cenas de sexo com os atores?

Aïnouz -
A gente fez alguns ensaios para essas cenas. Fizemos mais ensaios para a cena do Guilherme Piva e para a cena da Tabu (Flávio Bauraqui) com o policial. Para a cena do Lázaro com o Felipe [Marques, que vive Renatinho] eu fiz um ensaio só e senti que não tinha de fazer mais... foi um ensaio até a cueca. Eu não quis mais fazer, mas dei a eles a possibilidade de eles ficarem íntimos entre eles por causa da filmagem e com a equipe que estaria ali filmando. E eu deixei para filmar a cena por último.

Mas o trabalho mais importante foi a construção de confiança entre os atores, o diretor e o fotógrafo, um trabalho de respeito que só se constrói com o tempo. Nós tínhamos previsto uma noite toda para filmar essa cena, mas fizemos em metade da noite.

O maior segredo em relação a cenas de intimidade é a construção de uma relação de confiança. O ator está muito vulnerável, literalmente desnudo... se ele não tiver confiança no diretor, ele nunca vai me dar sinceridade.

O segredo é muito silêncio, confiança e intimidade no próprio ato de filmar. É tudo sério, isso é um trabalho. Não pode ter brincadeira. É quase manter um espírito de sagrado. É sempre muito difícil compartilhar da intimidade do outro.

Folha Online - Nas últimas cenas do filme, há uma apresentação de Madame Satã que pode ser considerada antológica, como alguns poucos momentos vistos no cinema brasileiro... e ele termina com uma cena totalmente borrada, em que não se vê nada. Qual é a representação disso?

Aïnouz -
A primeira idéia que há dessa cena é baseada no trabalho do Artur Omar, "Antropologia das Faces Gloriosas", é quase a interpretação no palco de um texto que ele fala no banheiro: é antropofágica, dionisíaca, é sexual, não sensual, é arriscada... eu brinquei com a mudança do registro da voz dele. Para mim, é a Tropicália que se encontrou com Ney Matogrosso e voltou para 1930. São dois momentos importantes na cultura brasileira.

Lá está o exercício da felicidade, é uma cena explosiva, à flor da pele. E tem uma influência de candomblé porque tem uma hora que baixa o santo.

O que era muito importante para mim naquela cena era tentar construir não só a estrela do palco, mas também a infecção que essa felicidade provoca no público. Era super importante que fosse absolutamente promíscuo, celebratório... As pessoas saíram em estado de êxtase daquela cena. Ele entrava no meio do público, voltava para o palco, uma coisa de orgia mesmo. Foi carnavalesco. Foi um prazer filmar aquilo, totalmente inspirado em Ney Matogrosso, um mix de muita coisa. Aquilo para mim é Semana de Arte Moderna no Rio de Janeiro, pura antropofagia.

Nesse dia, eu briguei com a minha figurinista porque ela tinha feito uma roupa com um top, totalmente inspirado em uma capa de disco da Josephine Baker. Era o top e a saia, mas estava muito feminino. O Madame Satã não tinha vergonha de ser homem, apesar de gostar de ser mulher. Eu tirei o top e amarrei na cintura dele. Aquela cena tem um limite entre o gênero masculino e feminino, sem blusa, ele não era uma drag queen.

As últimas cenas, do Carnaval, foram filmadas em Super 8. Fiz assim porque eu queria que fosse o mais borrado o possível, parecendo o mais documental que pudesse. Deu uma outra textura e outro tempo à história, pois são dez anos depois.

Folha Online - O que você espera do público que vai assistir "Madame Satã"?

Aïnouz -
Tem uma coisa muito interessante sobre o público e que me surpreendeu. Pode ser que eu me engane. A gente só mostrou o filme para platéias de cinéfilos, em festivais. Por onde ele passou, ele tem tido salas cheias. Não vai ser um blockbuster, mas o mais legal é a questão da identificação do público com os personagens. As questões como sexo, violência, pobreza... ele é um filme redentor, que se passa neste universo não muito agradável. Eu sempre tinha receios com estas razões. O público é muito mais inteligente do que você imagina, ele é curioso. Eu nunca imaginei que eu faria um filme para que as pessoas rissem, mas elas riem. Mas o que eu acho que gera mais identificação com o público é o núcleo central do filme, que é uma família, pai, mãe, filho e empregada. As outras questões passam a ser periféricas.

É evidente que tem gente que vai sair do cinema porque tem uma cena entre dois homens ou de uma navalhada... Ninguém está aqui para agradar todo mundo. Tem gente que vai sair porque não está acostumada com isso ou porque não concorda com isso. Mas há um resultado mais positivo do que o esperado.

  Veja fotos de "Madame Satã"

Veja o trailer*:
  • 56 k (TV UOL)

  • Alta velocidade (TV UOL)

  • (*)somente para assinantes

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  • Para protagonista, "Madame Satã" é a ascensão dos excluídos

  • "Onda Lula" impulsiona também "Madame Satã" nos cinemas

  • Veja como foi o chat com Karim Aïnouz no UOL (26.out.2002)

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