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10/10/2003 - 03h31

Caixa "Negra" restaura fase da carreira de Elza Soares

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PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Folha de S.Paulo

A maré continua cheia para Elza Soares, 66. A bordo do sucesso do álbum independente "Do Cóccix até o Pescoço", no ano passado, a gravadora EMI se motiva agora a reeditar na íntegra seu catálogo da obra da cantora carioca.

A caixa "Negra" agrupa, em 12 CDs, os 17 discos que Elza gravou pela gravadora (então chamada Odeon), entre 1960 e 1973, mais quatro títulos da fase 1974-77 (pela extinta Tapecar) e um posterior pela RGE ("Voltei", 1988). Um CD-bônus com raridades completa o material, compilado pelo pesquisador Marcelo Fróes.

Enquanto isso, Elza já concluiu a gravação de um novo álbum independente, que deve sair em novembro pelo selo paulistano Reco-Head, com participações especiais de Nando Reis, Ed Motta e do rapper francês Pyroman.

Em entrevista exclusiva resumida abaixo, Elza relembra, com certa relutância diante do passado, os anos resgatados em "Negra". O rumoroso caso extraconjugal com o jogador Garrincha, no início dos anos 60, e a até hoje inexplicada expulsão do casal do país, em 69, são alguns dos temas.

Folha - Você já viu a caixa de CDs?

Elza Soares -
Recebi a caixa, mas fiquei com medo, não abri.

Folha - Por quê?

Elza -
Ah, não sei, não sei, não sei... É emoção também, ali está uma vida, com uma recordação muito grande, mas existe uma coisa muito cruel na arte. A gente gostaria de ser mais bem remunerada. É bom a gente ter um passado, uma coisa linda guardada. Não vou dizer que não estou feliz, estou tão feliz que não tenho coragem de abrir. Mas o supermercado custa caro, tudo tem um preço. A caixa chegou linda, mas podia vir assim: "Elza, como presente, tome um chequezinho para você também". Não precisava tanto, R$ 100 mil estava bom, só para comprar um sapato novo [ri].

Folha - Não há um medo seu de relembrar o passado por trás disso?

Elza -
Não, não. Juro que não. Não me diz nada. Sou muito de agora. Tudo que está ali eu sei que já passei. Mas eu sou muito "now", meu nome é "Now". Brinco nos shows que adoro ser dólar. Está em baixa, né? Todo mundo quer, todo mundo compra.

Folha - Seus discos iniciais eram influenciados pelas vozes de Aracy de Almeida e Dalva de Oliveira, mas também pelo advento da bossa nova. A mistura era proposital?

Elza -
Acho que era o tempo, né? Como houve o tempo de Carmen Miranda, naquele tempo o que a gente ouvia eram aquelas vozes. A gente não tinha outra coisa para ouvir, você é aquilo que ouve.
Cheguei no vozeirão e entrei também na bossa nova, na modernidade, talvez até por causa daquele rouquinho da voz, que já veio mudando as coisas. Mas no começo eu não conhecia nada, ia no instinto, cantava como mamãe cantava dentro de casa. Se ligava rádio em casa, tomava porrada, porque só se ligava na "Voz do Brasil", quando meu pai chegava.

Folha - No início você alternava grandes clássicos da música brasileira com músicas de autores novos, vários dos quais hoje são totalmente desconhecidos.

Elza -
Gosto muito de lançar. Você pega gente que é desconhecida e canta, fica conhecendo uma coisa nova e também dá chance para a pessoa fazer seu trabalho. É cantar sem egoísmo. Sempre tive essa preocupação, até hoje.

Na entrada da gravadora ficava uma porção de gente parada. E me chamavam, "Elza, Elza, Elza", e eu não entendia por que me puxavam, não me deixavam falar com aquela gente. Eram compositores novos que queriam chance. A gravadora dizia que não dava, que não tinha como. Então eu os convidava para minha casa, lá eles cantavam. No dia da gravação levava lá aquela turma, diziam que era meu navio negreiro.

Folha - Preconceituoso, não?

Elza -
É, era uma coisa meio estranha, "a Elza quando canta parece um navio negreiro". Acho que tem isso também, mas passei por cima. Afinal, eu fazia parte daquele navio. Briguei muito para incluir aqueles compositores. Diziam para não dar confiança, porque eu já tinha um repertório preparado, porque eu era a "nossa Sarah Vaughan", "nossa Ella Fitzgerald". Eu dizia: "O que é isso?", não sabia nem o que era. Pensava: "É tanta gente, quero ver quando é que vou ser a Elza". Mas o importante era que levava comida para as crianças em casa.

Folha - A caixa recupera uma faixa rara, "Eu Sou a Outra", que falava de uma história que você própria estava vivendo com o Garrincha. Era uma provocação?

Elza -
Para ver como eu era ingênua, me disseram: "Você tem que cantar, vai ser o maior sucesso". Foi a primeira vez que vi um disco meu ser quebrado na TV. Gente, eu gravei como se estivesse dizendo a verdade, e muitos tinham como provocação. Isso me machucou muito, porque não esperava nem busquei viver aquilo. Ninguém me compreendia. Não podia sair de casa, foi um susto, me prejudicou. Joguei muito no bicho, ganhei muito dinheiro no bicho para comer, nessa época.

Folha - Como se formou a parceria com Miltinho?

Elza -
Milton Miranda, que era diretor da Odeon, queria trazê-lo para a gravadora, mas queria que eu gravasse com ele. Aí fizemos, foi um sucesso estrondoso, três volumes. Quando me mandaram embora do país, Miltinho foi fazer os discos com Doris Monteiro.

Folha - Como foi essa expulsão?

Elza -
Uma coisa absurda, recebi um bilhete dizendo que eu tinha 24 horas para sair do país. Como não saí, metralharam minha casa. Eu não sabia de nada, nada, nada. Até hoje eu queria saber por quê.

Folha - A Odeon manteve seu contrato enquanto você estava fora?

Elza -
Sim, mas a coisa ficou estranha. Quando levei Roberto Ribeiro para gravar comigo, ouvi dizerem uma coisa muito forte sobre ele, que vou guardar para botar no meu livro. Mas pensei: "Se é assim, o que estou fazendo aqui?". Saí fora, como já saí de gravadora por causa do Jorge Aragão. Escutava falarem, brigava, ia embora, "amanhã vocês me contam a história". Provo que é bom, embora as pessoas não acreditem. Se todo mundo fizesse isso, não existiria campanha Fome Zero.

Folha - Na fase seguinte, sua música ficou semelhante ao que Clara Nunes ficou fazendo na Odeon?

Elza -
Ai, não. Quem lançou Clara fui eu. Fui eu que a levei à Odeon. Se existe semelhança, alguém é que é semelhante à Elza.

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