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13/12/2003 - 06h36

Nobel J.M. Coetzee veste sua narrativa com Dostoiévski

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MARCELO PEN
crítico da Folha

Os leitores acostumados com a narrativa quase lacônica do sul-africano J.M. Coetzee, podem ficar surpresos com "O Mestre de Petersburgo" (1994), que é reeditado. Não pelo tema do romance --supostos eventos na vida de Fiódor Dostoiévski--, mas por ele vir embalado por um entrecho policial relativamente movimentado, envolvendo assassinatos e terrorismo.

A história começa em 1869, quando Dostoiévski, 49, retorna a São Petersburgo, de onde fugira para Dresden, na Alemanha, assolado por dívidas. O motivo da volta é a morte de um enteado, Pável Isaev, que despencara de uma torre em ruínas.

Quando Dostoiévski chega à antiga capital russa, o enteado já fora enterrado. Hospeda-se no quarto de Pável, alugado pela viúva Anna Kolenkina. Logo descobre que o moço se ligara a uma organização terrorista chamada Vingança do Povo. E que os escritos de Pável, cartas, ficção, diário, foram apreendidos pela polícia.

O mentor da Vingança do Povo é Serguei Nietcháiev, jovem anarquista que existiu de fato (sua condenação pela morte de um estudante inspirou Dostoiévski a escrever "Os Demônios"). O romancista desconfia que o grupo terrorista assassinou Pável, enquanto Nietcháiev afirma que os policiais o mataram.

Enquanto isso, Dostoiévski oferece ajuda a um mendigo, sem saber que é um espião da polícia. O homem acaba assassinado e o escritor passa a ser suspeito do crime. É preciso lembrar que, embora aliado do czar, Dostoiévski no passado fora acusado de complô contra Nicolau 1º.

Com a mesma suspeita, encara-o a Vingança do Povo, que deseja cooptá-lo. Dostoiévski resiste a Nietcháiev, a quem considera a própria encarnação do Baal, o falso ídolo dos hebreus. Mesmo assim, é levado por ele em excursões pelos arredores de Petersburgo, descendo aos subterrâneos mais miseráveis da cidade.

A história continua nesse tom, e o leitor pode reconhecer vários elementos da ficção de Dostoiévski, mas a verdade é que eles não desempenham a mesma função que exercem na narrativa do russo. Coetzee trata dos temas dostoievskianos a seu modo, é claro.

No início, detectamos o grande assunto de sua ficção, o entendimento do outro. E o outro, neste romance, é nada menos que a morte. Representada por Pável, a morte torna-se "medida para todas as coisas", e se atrela aos terroristas: "Se você não mata, não é levado a sério", diz Nietcháiev.

A morte é ambígua e não prescinde da vida nem dos prazeres carnais. Dostoiévski faz amor com Anna para alcançar o enteado. Primeiro ele, depois Nietcháiev, vestem o terno branco de Pável. O anarquista, aliás, costuma travestir-se para escapar à polícia, levando a ambiguidade para o campo do gênero sexual. A certa altura, quando o escritor e a viúva fazem amor, "como se estivessem condenados à morte", também não se sabe "qual é o homem, qual é a mulher".

Coetzee, como disse à Folha o escritor Ian McEwan, gosta de misturar ficção e filosofia, como no ainda não traduzido "Elizabeth Costello". Em "O Mestre de Petersburgo", teve a chance de integrar à narrativa idéias filosóficas, fatos históricos e temas extraídos à ficção de Dostoiévski. É uma tarefa hercúlea, mas de resultado não inteiramente satisfatório. Tem razão, por exemplo, quem acha que o livro não acrescenta muito ao imaginário do russo. Mas não há como negar que se trata de obra de imaginação bastante acima da média.

O Mestre de Petersburgo
Autor:
J.M. Coetzee
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 34,50 (248 págs.)

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