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19/03/2004 - 04h43

Filme de Gibson não ultrapassa sentimento tradicional

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ROBERTO ROMANO
Especial para a Folha de S.Paulo

Para entender a plástica e a doutrina do filme, é preciso retornar à igreja anterior ao Concílio Vaticano 2. A película reproduz o catolicismo gerado no Império Romano e transposto às sociedades feudais e modernas. O juízo sobre os judeus naquele setor religioso era claro: os compatriotas de Jesus o destruíram com sumo dolo, pecaram contra a divindade trina da qual o mesmo Jesus seria a segunda pessoa. O judaísmo acolhe deicidas.

"Oremus et pro perfidis Judaeis" (oremos pelos pérfidos judeus): "Eterno e onipotente Deus, que não vos afastais nem mesmo da perfídia judaica, escutai a nossa prece, a qual elevamos pela cegueira daquele povo, para que ele conheça a luz --que o Cristo existe-- e se afaste das trevas".

Tais invocações eram feitas na Sexta-Feira da Paixão. Defensores do catolicismo afirmam que "pérfido" significa apenas "descrente". Em latim, o termo não evocaria algo perverso. O missal traduzido para as línguas vulgares (no francês "perfide", no alemão "treulos" etc) teria produzido a idéia depreciativa. Antes do Concílio, no entanto, com pleno conhecimento de causa, o vocábulo "pérfido" serviu para diminuir os judeus.

Ele significa "traidor" em Horácio, Cícero, Tácito, lidos pelos doutores eclesiásticos. João 23, o papa humano, manteve na oração apenas o "rezemos pelos judeus", sem adjetivos infamantes (25/7/ 1960).

Quem hoje reza em latim, como os tradicionalistas católicos, usa paramentos romanos, celebra cerimônias sagradas de costas para os fiéis, luta contra o capitalismo liberal e contra o socialismo, abomina o aborto e as experiências homossexuais também guarda a raiva contra os "pérfidos" judeus.

Essa "Paixão de Cristo" é tão anti-semita quanto a igreja, até o Vaticano 2. Ainda hoje existe muito ódio aos judeus entre cristãos. Sob esse ângulo, o filme é bastante moderado. Gibson não ultrapassa o sentimento tradicional e difere de outros anti-semitismos católicos, como o de Carl Schmitt.

Na primeira parte de sua vida, aquele jurista foi católico e conservador. Ao seguir o nazismo, ele exacerbou o ressentimento contra os judeus e saiu da igreja. A prevenção exibida por Gibson tem outro feitio: o seu filme segue perfeitamente as normas éticas e estéticas da igreja.

A comunhão católica se produziu como síntese dos cinco sentidos. Para cada um deles há ritos e formas. O concílio de Nicéia (ano 325) proclamou: "Cremos em um Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis".

No catolicismo, o infinito penetra a finitude, o verbo se faz carne. A sua estética valoriza a imagem (combatida por arianos e reformados), um penhor divino.
Como diz o Padre Vieira, referindo-se à Paixão: se o padre fala dos sofrimentos de Jesus, a platéia boceja. Se ele mostra o retrato do homem coroado de espinhos, a emoção empolga a fé.

Essa técnica persuasiva é usada em cerimônias e procissões onde o divino aparece com violência maior ou menor. O circo efetivou o que no filme de Gibson se exaspera: os olhos são lacerados pelo escândalo de um Deus que sofre. O Messias dolorido (salvo em Isaías, 53) nunca foi aceito pelo judaísmo.

A dor cristã é tamanha que a percebemos, sobretudo na película de Gibson, como um fim em si mesma. Flagelos arrastam novos martírios e o suplício infindável (no filme, a tortura de Jesus pelos soldados) adquire força erótica. Gregos e romanos viam na morte cristã uma loucura assumida como verdade.

A pergunta de Pilatos ("Quid est veritas?"), irônica e perplexa, mostra o quanto a Paixão de Cristo é um paradoxo para a racionalidade humana. Ontem e hoje.

Roberto Romano, 57, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo) e "O Caldeirão de Medéia" (Perspectiva), entre outras obras

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