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17/04/2004 - 06h15

Lygia Fagundes Telles tira do "escuro" de seus contos 1ª antologia

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CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S.Paulo

A simpática figura aqui ao lado anda pelas ruas de São Paulo sem que os passantes desconfiem que ela é um Mike Tyson. Tyson não. Talvez Muhammad Ali. Faz parte do rol dos artistas do nocaute.

Lygia Fagundes Telles tem braços delicados. Não usa protetor bucal nem besunta o rosto para distrair golpes adversários; mal adversários tem. Nunca ouviu de perto uma sineta anunciando o próximo round. Derruba os outros com as duas mãos --dez dedos oblongos sobre uma pequena máquina de escrever Olivetti verde musgo, comprada na Itália.

Impiedosa, a autora leva ao público na semana que vem a relação de seus nocautes "do coração". Lygia lança na 18ª Bienal do Livro de São Paulo, com participação em debate na próxima sexta, "Meus Contos Preferidos".

Dona de extenso cartel de publicações, a escritora faz com este volume, editado pela Rocco, a primeira antologia de suas narrativas breves. São 31 contos, 31 exemplos da repisada (e não por isso menos brilhante) idéia difundida por Júlio Cortázar: "No combate entre um texto apaixonante e seu leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute".

Com jeito de peso-pena, voz pausada e gestos leves, Lygia responde com um "gancho" à velha pergunta da diferença do conto e do romance: "Um professor meu do curso fundamental dizia que o romance é o croquete de porta de circo de cavalinho. O rabo e a cabeça do camarão, com bastante trigo no meio. No conto, estaria o camarão inteiro". Ela não concorda. Faz a esquiva: "O camarão tem de estar inteiro sim, nos dois. O leitor percebe quando é trigo".

Surpreender o oponente, que esperava qualquer coisa que não analogias com croquetes de camarão, é praxe nos contos da autora de "A Noite Escura e Mais Eu". O ambiente noturno de suas histórias bem pode começar com formiguinhas andando por um casarão e terminar com a ossada de um anão. Mas, mais do que surpresa, a matéria-prima é ambigüidade. "O ser humano é incontrolável, indefinível e inacessível", diz a escritora à Folha. "Pronto. Três 'is': incontrolável, indefinível e inacessível", repassa. "Por mais que você procure se aproximar do ser humano, ele nos escapa. Como a própria morte."

Não são poucos os mortos nos textos de Lygia. Não é fortuita a ligação da autora do livro "Mistérios" com os mistérios, com Edgar Allan Poe (do rol de seus prediletos, encabeçado por Machado de Assis), com os filmes de terror, tema de um grosso livro de arte deitado na estante de sua sala.

De onde virão essas noites escuras mais Lygia? Contadora de histórias das boas ("Ela é a primeira-dama do conto brasileiro", diz à Folha Marçal Aquino; "Não há escritor brasileiro que não bata a cabeça para Lygia", adiciona Ivana Arruda Leite; "É uma escritora que domina a narrativa breve como poucos no Brasil", testemunha Milton Hatoum), ela conta.

"Na infância, um mistério me puxou pela manga. Desde então o indefinível sempre me atraiu."

Mais paulistana dos grandes escritores brasileiros, ela morou um breve tempo no interior do Estado, Sertãozinho. Um dia, a menina "solitária, quieta e chorona" estava num canto, bordando, e a mãe lhe ofereceu uma história.

Falou de uma bisavó chamada Elzira, que escrevia versos com penas de ganso, tocava cravo e gostava de se debruçar nas janelas. Recém-formado em São Paulo, em medicina, um moço de nome doutor Paixão passava sempre a cavalo, com um sorriso e um leve toque no chapéu. Encontraram-se pela primeira vez em uma novena. Apaixonaram-se. E Paixão foi pedir a mão de Elzira.

"Só esqueceu que era mestiço. Apesar de médico, era pobre e mulato. A família achou loucura."

Paixão ficou de coração partido. Encontrou com a moça uma última vez, em dia de tempestade, e se mandou para São Paulo. "Ela chegou em casa outra pessoa. Não escreveu mais versos, não tocou mais o cravo, comia e falava pouco. Todas as noites punha no peito uma toalha ensopada de água. Ficou tuberculosa. Seis meses depois da partida dele, morreu."

"Quiseram chamar o doutor Paixão. Mas não havia naquele tempo jornal nem internet. Ele nem soube da morte dela."

Sertãozinho, o nome diz, era cidade seca. Não havia nenhuma flor em seus jardins para pôr na sepultura da morta. E, de repente, toca uma sineta. "Chega um moço lindo, com uma braçada de lírios recém-colhidos para cobrir o caixão de Elzira."

As flores não tinham cartão, e o pai de Elzira corre para falar com o mensageiro. "O homem evaporou na frente dele. Era um anjo."

Foi assim que Lygia casou-se com os mistérios, com o "aquilo que poderia ter sido e não foi".

O "que foi" não lhe interessa muito. O que pode ser e está sendo, sim. Sobre a escrivaninha tem um cachorro cor-de-rosa de pelúcia com uma estrela do PT. "Ele se chama Palocci, o único que se salva nessa nau de insensatos."

Lygia não deixa barato. Toca a sineta, começa outro round e ela continua a sua série de nocautes.

MEUS CONTOS PREFERIDOS
Autora:
Lygia Fagundes Telles
Editora: Rocco
Quanto: preço a definir

Colaborou Alexandra Moraes, da Redação

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