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04/08/2004 - 07h23

Livro faz viagem cronológica pela filmografia de Hitchcock

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PEDRO BUTCHER
crítico da Folha

O primeiro encontro entre François Truffaut e Alfred Hitchcock foi, literalmente, um banho de água fria. Aconteceu no inverno de 1955, quando Hitchcock estava na França finalizando "Ladrão de Casaca".

Truffaut e seu colega de redação de "Cahiers du Cinéma", Claude Chabrol, aproveitaram para marcar uma entrevista com o ídolo. No dia marcado, entraram na sala em que Hitchcock trabalhava, onde viram umas 15 vezes o mesmo trecho do filme, com Brigitte Auber e Cary Grant. Foram esperar Hitchcock no bar do estúdio e, ainda aparvalhados com a breve sessão exclusiva, não notaram o tanque de água congelada à sua frente. A fina camada de gelo rachou e os dois afundaram o gravador, inutilizado.

Nas palavras de Truffaut: "Foi tiritando em nossas roupas encharcadas que nos apresentamos a Hitchcock. Ele olhou para nós sem fazer comentários e aceitou um novo encontro para aquela noite. No ano seguinte, de volta a Paris, nos identificou de imediato no meio de jornalistas e disse: penso em vocês cada vez que vejo duas pedras de gelo chocando-se num copo de uísque".

Sete anos depois, em 1962, Truffaut escreveria uma longa carta a Hitchcock. Estava revoltado com as cobranças dos críticos americanos que ainda desprezavam o cineasta de "Psicose" e se recusavam a concordar com a valorização empreendida pelos franceses desde os anos 50. Teve então a idéia de propor a Hitchcock um "questionário sistemático", que poderia resultar em "um livro capaz de modificar a opinião dos críticos americanos."

Na carta ao mestre, evocou a história das "pedras de gelo" e lhe propôs uma nova entrevista, a seco e muito mais longa. No fim da carta, dá um golpe de misericórdia em busca da aceitação: "O conjunto seria introduzido por um texto que escreverei e que poderia se resumir assim: se um dia o cinema se visse novamente privado de som, muitos cineastas estariam condenados ao desemprego, mas entre os sobreviventes estaria Hitchcock. E todo mundo finalmente compreenderia que ele é o melhor diretor do mundo."

Hitchcock respondeu a Truffaut com um telegrama em francês, confessando ter-se comovido às lágrimas. Propunha, então, as entrevistas para o fim de agosto, depois das filmagens de "Os Pássaros". E assim foi. Deu-se um encontro feliz, mediado pela presença essencial de Helen Scott (que funcionou muito mais que uma tradutora) e que resultou naquele que, possivelmente, é o melhor livro já escrito sobre cinema.

"Hitchcock/Truffaut", que já havia sido editado por aqui em 1986, pela Brasiliense, mas há anos encontrava-se esgotado até nos sebos, enfim ganha uma reedição brasileira, pela Companhia das Letras. É um livro para se ler com o mesmo prazer que se vê um filme de Hitchcock. Tem uma dimensão jornalística/informativa e outra poética. Tanto pode ser encarado como um trabalho de investigação sobre o processo criador ou como a história emocionante de uma amizade em torno da paixão pelo cinema.

Hitchcock, que estaria completando 105 anos no próximo dia 13 de agosto, embarca na proposta com abertura e disposição. O livro não se detém em detalhes biográficos, embora conte algumas passagens importantes.

Logo na sua primeira resposta, por exemplo, ele conta um bizarro fato de sua infância: "Eu devia ter quatro ou cinco anos. Meu pai me mandou à delegacia de polícia com uma carta. O delegado leu e me trancou na cela por uns cinco ou dez minutos, dizendo: É isso que se faz com garotinhos levados". Hitchcock jamais se esqueceu do episódio mas não faz idéia do motivo da "prisão".

O livro segue com determinação quase messiânica a proposta de descrever um processo de trabalho. Cada página é parte de uma busca para descrever o pensamento puramente cinematográfico, aquele que fez de Hitchcock "um dos maiores inventores de forma de toda a história do cinema", pois nele "a forma não embeleza o conteúdo, mas o cria" (como afirmaram Chabrol e Eric Rohmer no livro que escreveram ainda em 1957).

Portanto a viagem é cronológica pela filmografia de Hitchcock, e não faltam momentos inspirados das duas partes. Truffaut mostra um conhecimento não apenas enciclopédico mas também analítico, inteligente. E Hitchcock destila sua fina ironia inglesa. Estão lá desde os motivos de suas famosas aparições até a explicação essencial do que é um "McGuffin", assim como frases de efeito como "certos filmes são fatias de vida, os meus são fatias de bolo."

HITCHCOCK/TRUFFAUT
Editora:
Companhia das Letras (368 páginas)
Quanto: R$ 65

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