Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
03/03/2007 - 09h00

Leia capítulo do livro "A Fragata Surprise", de Patrick O'Brian

Publicidade

da Folha de S.Paulo

Leia a seguir o primeiro capítulo do livro "A Fragata Surprise", do britânico Patrick O'Brian (1914-2000), traduzido por Alves Calado e publicado pela editora Record. Crítica da obra foi publicada neste sábado na Folha (disponível para assinantes da Folha e do UOL).




CAPÍTULO UM

- Mas devo observar, senhor, que o dinheiro proveniente das presas marítimas é essencial para a Marinha. A possibilidade, ainda que remota, de fazer fortuna através de algum golpe brilhante é um estímulo sem igual para a diligência, a atividade e a atenção constante de cada homem a bordo. Tenho certeza de que os atuais membros do Conselho me apoiarão nisso - disse ele, olhando ao redor da mesa. Várias das figuras uniformizadas levantaram a cabeça e houve um murmúrio de concordância, mas não foi geral; alguns civis tinham um ar enfadado e descomprometido, e um ou dois dos marinheiros permaneceram olhando para as folhas de mata-borrão postas na frente deles. Era difícil captar o clima da reunião, se é que alguma corrente distinta já havia se estabelecido. Esta não era a sessão restrita usual dos lordes comissários do Almirantado, mas era a primeira reunião geral da nova administração, a primeira desde a partida de lorde Melville, com vários membros novos, muitos chefes de departamento e representantes de outros conselhos; estavam tateando o caminho, comportando-se com contenção política, controlando o ardor. Era difícil avaliar a atmosfera, mas mesmo sabendo que não estava com todo o grupo a seu favor, ele ainda não sentia qualquer oposição decidida, pelo contrário, percebia uma oscilação, e esperava que pela força da convicção pudesse levar adiante seu argumento contra a débil relutância do primeiro lorde do Almirantado. - Um ou dois exemplos marcantes desse tipo, no decorrer de uma guerra muito demorada, bastam para estimular o zelo de toda a esquadra através de anos e anos de trabalho duro no mar; ao passo que uma negação, por outro lado, deve necessariamente ter um... deve necessariamente ter o efeito contrário.

Sir Joseph era um chefe de inteligência naval capaz e inteligente, mas não era um orador, em especial diante de uma platéia tão grande; não tinha conseguido encontrar a expressão de ouro; as palavras certas haviam-lhe escapado, e percebia um clima desfavorável, uma falta de convicção, no ar.

- Não posso sentir que Sir Joseph esteja totalmente certo ao atribuir essas motivações de interesse aos oficiais de nossa Marinha - observou o almirante Harte, inclinando a cabeça obsequiosamente na direção do primeiro lorde. Os outros membros da instituição olharam-no rapidamente e uns para os outros. Harte era o mais ansioso perseguidor da grande chance na Marinha, o mais ardente caçador de tudo que estivesse navegando, desde um barco holandês de pesca de arenques até um pesqueiro bretão.

- Estou atado por precedentes - disse o primeiro lorde, voltando um rosto vasto, glabro e inexpressivo de Harte para Sir Joseph. - Houve o caso do Santa Brigida...

- Do Thetis, senhor - sussurrou seu assistente.

- Quero dizer, do Thetis. E meus conselheiros jurídicos dizem que esta é a decisão apropriada. Estamos sujeitos à lei do Almirantado: se a presa foi tomada antes da declaração de guerra os rendimentos vão para a Coroa. São direitos da Coroa.

- A letra rígida da lei é uma coisa, senhor, e a eqüidade é outra. A lei é algo de que os marinheiros nada sabem, mas não existe grupo de homens mais apegado aos costumes e mais atentos à eqüidade e à justiça natural. Esta postura, pelo modo como a vejo, e como eles verão, é a seguinte: vossas excelências, com total conhecimento da intenção dos espanhóis de entrar na guerra, de se juntar a Bonaparte, não perderam a oportunidade. Para travar uma guerra com alguma chance, a Espanha precisava do tesouro enviado do rio da Prata; portanto, vossas excelências ordenaram que ele fosse interceptado. Era essencial agir sem perda de tempo, e a disposição da Esquadra do Canal da Mancha era tamanha que... resumindo, tudo que pudemos mandar foi um esquadrão composto das fragatas Indefatigable, Medusa, Amphion e Lively; e elas tinham ordem de deter a força espanhola, que era superior, e levá-la para Plymouth. Com esforços exemplares e, devo dizer, com a ajuda de um notável golpe de inteligência, para o qual não reivindico crédito, o esquadrão chegou ao cabo de Santa Maria a tempo, travou batalha com os espanhóis, afundou um e apresou os outros depois de um combate determinado, não sem sérias perdas de nosso lado. Eles cumpriram a missão; privaram o inimigo de sua fonte e trouxeram para casa cinco milhões de duros. Se agora lhes dissermos que esse dinheiro, esses duros, serão, ao contrário do que é costume, considerados não como prêmio mas como direitos da Coroa, bem, isso terá um efeito tremendamente deplorável em toda a esquadra.

- Mas como a ação ocorreu antes da declaração de guerra... - começou um civil.

- E a Belle Poule, em 78? - gritou o almirante Parr.

- Os oficiais e os homens de nosso esquadrão não tiveram nada a ver com qualquer declaração - disse Sir Joseph. - A função deles não era se intrometer em questões de Estado, e sim executar as ordens do Conselho. Atiraram primeiro contra eles; em seguida cumpriram seu dever segundo as instruções, a um custo que não foi pequeno e com enorme vantagem para o país. E se vão ser privados de sua recompensa costumeira eu afirmo: se o Conselho, sob cujas ordens eles agiram, vai se apropriar do dinheiro, o efeito particular sobre os oficiais envolvidos, que foram levados a se acreditar fora do alcance da penúria, ou de qualquer coisa que se assemelhe à penúria, e que sem dúvida se comprometeram com esse acordo, será... - ele hesitou procurando a palavra.

- Lamentável - disse um contra-almirante da esquadra azul.

- Lamentável. E o efeito geral sobre a instituição, que não terá mais esse esplêndido exemplo do que o zelo e a determinação podem realizar, será muito mais amplo, haverá muito mais a ser deplorado. Esta é uma questão arbitrária, senhor, os precedentes apontam em direções contrárias; e nenhum foi julgado em tribunal. E lhe digo com grande seriedade que seria muito melhor que o Conselho usasse seu discernimento a favor dos oficiais e homens envolvidos. Isso pode ser feito sem grande despesa para o país, e o exemplo pagará essa despesa multiplicada por cem.

- Cinco milhões de duros - disse o almirante Erskine, cheio de desejo, no meio de uma hesitação geral. - Era mesmo tanto assim?

- Quem são os oficiais diretamente interessados? - perguntou o ministro.

- Os comandantes Sutton, Graham, Collins e Aubrey, senhor - disse o secretário particular. - Aqui estão os históricos de carreira deles.

Houve silêncio enquanto o primeiro lorde do Almirantado examinava os papéis, silêncio rompido apenas pelo ranger da pena do almirante Erskine convertendo cinco milhões de duros em libras esterlinas, dividindo o resultado pelo valor das presas costumeiras e chegando a uma resposta que o fez assobiar. Ao ver aqueles arquivos Sir Joseph soube que o jogo estava terminado, o novo primeiro lorde podia não saber nada sobre a Marinha, mas era um velho parlamentar, um político astuto e havia dois nomes ali que eram anátema para a administração atual. Sutton e Aubrey jogariam o peso desgraçado da política do partido na balança que oscilava; e os outros dois comandantes não tinham qualquer tipo de influência - fosse parlamentar, social ou de serviço - para alterá-lo.

- Sutton eu conheço do Parlamento - disse o primeiro lorde, franzindo a boca e rabiscando um bilhete. - E o comandante Aubrey... o nome é familiar.

- Filho do general Aubrey, senhor - sussurrou o secretário.

- Sim, sim. Membro da Grande Confusão, que fez um ataque tremendamente furioso contra o Sr. Addington. Ele citou o filho em seu discurso contra a corrupção, lembro. Ele cita o filho freqüentemente. Sim, sim. - O ministro fechou os dossiês pessoais e olhou para o relatório geral. - Ora, Sir Joseph - disse depois de um instante -, quem é esse Dr. Maturin?

- Um cavalheiro sobre quem mandei uma minuta ao senhor na semana passada - disse Sir Joseph. - Uma minuta com capa amarela - acrescentou com leve ênfase, uma ênfase que, no tempo de Melville, seria o equivalente a jogar um tinteiro na cabeça do primeiro lorde.

- É comum que homens do serviço médico recebam patentes temporárias de capitão-de-mar-e-guerra? - continuou o primeiro lorde, deixando de perceber a ênfase e esquecendo-se do significado da capa amarela. Todos os oficiais de Marinha levantaram a cabeça rapidamente, os olhares passando de um para o outro.

- Isso foi feito para Sir Joseph Banks e para o Sr. Halley, senhor, e acredito que para alguns outros cavalheiros cientistas. É um elogio excepcional, mas de modo algum desconhecido.

- Ah - respondeu o primeiro lorde, consciente de que algo no olhar frio e cauteloso de Sir Joseph indicava que tinha cometido uma gafe. - Então não tem nada a ver com este caso particular?

- Absolutamente nada, senhor. E, se me permite voltar por um momento ao comandante Aubrey, devo declarar sem medo de contradição que os pontos de vista do pai não representam os do filho. Longe disso, de fato - disse, não com alguma esperança de consertar a situação, mas para abafar a gafe, para afastar a atenção da mesma, e não ficou insatisfeito quando o almirante Harte, ainda esperando obter favores e ao mesmo tempo querendo satisfazer uma malevolência pessoal, disse:

- Seria adequado pedir que Sir Joseph declare um interesse pessoal?

- Não, senhor, não seria - exclamou o almirante Parr, com seu rosto de vinho do Porto ficando roxo. - Sugestão tremendamente inadequada, pelo amor de Deus. - Sua voz sumiu sob uma série de tosses e grunhidos, através dos quais pôde ser ouvido "suposição infernal... membro novo... mero contra-almirante... merdinha".

- Se o almirante Harte quer sugerir que de algum modo estou preocupado com o bem-estar do comandante Aubrey - disse Sir Joseph com um olhar gélido -, está equivocado. Eu não conheço o cavalheiro. Meu único objetivo é o bem da instituição.

Harte ficou chocado pela recepção do que havia considerado uma observação inteligente, e no mesmo instante recuou suas farpas, que tinham sido plantadas, entre muitas outras, pelo comandante Aubrey em questão. Confundiu-se em desculpas - não pretendera, não quisera, dar a entender suas reais intenções nem transparecer nenhuma censura contra o honradíssimo cavalheiro...

O primeiro lorde, um tanto contrariado, bateu a mão na mesa e disse:

- Mas, de qualquer modo, não posso concordar que cinco milhões de duros sejam uma despesa insignificante para o país; e como já disse, nossos conselheiros jurídicos garantem que eles devem ser considerados como direitos da Coroa. Por mais que, pessoalmente, eu gostasse de acompanhar a sugestão de Sir Joseph, que em muitos sentidos é ótima e convincente, temo que estejamos atados pelos precedentes. É uma questão de princípios. Digo isso com profundo pesar, Sir Joseph, sabendo que essa expedição, essa expedição com sucesso brilhante, estava sob sua égide; e ninguém poderia desejar mais riqueza e prosperidade para os cavalheiros da Marinha do que eu próprio. Mas nossas mãos estão amarradas, infelizmente. No entanto vamos nos consolar com a idéia de que restará uma soma considerável para ser dividida, nada da natureza dos milhões, claro, porém uma quantia considerável, ah, sim. Sim. E com esse pensamento confortável, senhores, acredito que agora devamos voltar a atenção...

Voltaram-na para as questões técnicas de recrutamento compulsório, orçamento e defesa, questões fora da competência de Sir Joseph, e ele se recostou na cadeira, observando os que falavam, avaliando suas capacidades. Medíocres, no geral; e o novo primeiro lorde era um idiota, um mero político. Sir Joseph havia servido sob o comando de Chatham, Spencer, St Vincent e Melville, e esse homem era uma figura digna de pena diante deles. Todos tinham tido seus pontos fracos, em particular Chatham, mas nenhum teria deixado de perceber o aspecto importante - todo o gasto nesse caso teria sido feito pelos espanhóis; os espanhóis é que dariam à Marinha Real o esplêndido exemplo de quatro comandantes apanhados sob uma chuva, um aguaceiro de ouro - o dinheiro não teria saído do país. As fortunas navais não eram muito comuns; e as fortunas existentes haviam sido reunidas por almirantes com comandos lucrativos, levando sua parte de inúmeras capturas das quais eles pessoalmente não participaram, em absoluto. Os comandantes que lutavam em seus navios, esses eram os homens a encorajar. Talvez ele não tivesse enfatizado esse argumento com tanta clareza ou empenho quanto deveria, não estava em forma depois de uma noite insone com sete relatórios de Bolonha para digerir. Mas, de qualquer modo, nenhum outro primeiro lorde do Almirantado, exceto talvez St Vincent, teria feito questão de transformar aquilo em política partidária. E certamente nenhum deles teria dito em voz alta o nome de um agente secreto.

Mas lorde Melville (um homem que realmente entendia a inteligência naval - um esplêndido primeiro lorde) e Sir Joseph eram muito ligados ao Dr. Maturin, seu conselheiro em questões espanholas e especialmente catalãs, um agente tremendamente incomum, totalmente desinteressado, corajoso, detalhista, absolutamente confiável e com qualificações ideais, que jamais havia aceitado a mínima recompensa por seus serviços - e que serviços! Ele é que trouxera as informações que lhes tinham permitido dar esse golpe mutilador. Sir Joseph e lorde Melville haviam pensado na patente temporária como um modo de obrigá-lo a aceitar uma fortuna fornecida pelo inimigo; e agora seu nome fora alardeado em público - nem mesmo na privacidade relativa do Conselho, e sim numa reunião muito mais variada - com a questão dirigida abertamente ao chefe da inteligência naval. Era inqualificável. Contar com a discrição daqueles marinheiros, cuja única noção de lidar com um inimigo tão inteligente quanto Bonaparte era explodi-lo na água, era inqualificável. Para não falar dos civis, dos políticos falastrões, cuja abordagem mais próxima ao perigo era uma luneta nos penhascos de Dover, de onde podiam olhar o exército invasor de Bonaparte, duzentos mil soldados, acampados do outro lado da água. Olhou os rostos ao redor da mesa; estavam ficando acalorados com as jurisdições do serviço de recrutamento e das tripulações dos navios - almirante gritava com almirante em vozes que podiam ser ouvidas em Whitehall, e o primeiro lorde parecia não ter qualquer controle sobre a reunião. Sir Joseph sentiu conforto nisso - talvez a gafe fosse esquecida. "Mas mesmo assim", disse a si mesmo, desenhando em seu bloco as metamorfoses de um almirante vermelho: ovo, lagarta, crisálida e imago, "o que direi a ele quando nos encontrarmos? Que tipo de expressão poderei fazer ao vê-lo?"

Em Whitehall uma garoa cinzenta caía sobre o Almirantado, mas em Sussex o ar estava seco - seco e perfeitamente imóvel. A fumaça subia da chaminé da pequena sala de estar em Mapes Court, formando uma pluma alta e reta, trinta metros antes de seu topo se esvair numa névoa azul que se acomodava nas reentrâncias das colinas atrás da casa. As folhagens ainda estavam penduradas, mas por pouco, e de tempos em tempos as folhas de um amarelo luminoso na árvore do lado de fora da janela caíam girando lentamente para se juntar ao tapete dourado embaixo, e, no silêncio, o impacto sussurrante de cada folha podia ser ouvido - um silêncio tão pacífico quanto uma morte fácil.

- Ao primeiro sopro de um vento todas essas árvores estarão nuas - observou o Dr. Maturin. - No entanto, o outono é uma espécie de primavera, também; já que nunca há apenas um broto que não seja empurrado pelo próximo. Dá para ver isso claramente mais ao sul. Na Catalunha, agora, onde você e Jack devem ir assim que a guerra terminar, as chuvas de outono trazem a grama como se fosse um exército de lanças; e mesmo aqui... um pouquinho menos de manteiga, minha cara, por favor. Já estou com a gordura em alto nível.

Stephen Maturin havia jantado com as damas de Mapes: a Sra. Williams, Sophia, Cecilia e Frances - traços marrons de sopa windsor, bacalhau, torta de pombo e manjar podiam ser vistos em seu lenço de pescoço, no colete cor de rapé e nas calças castanhas, porque ele era desmazelado ao comer e tinha perdido o guardanapo antes da primeira troca de pratos, apesar dos esforços de Sophia para preservá-lo -, e agora estava sentado de um dos lados da lareira tomando chá, enquanto do outro Sophia tostava bolinhos para ele, inclinando-se sobre o brilho rosa e prateado com uma atenção particular para não queimar o bolinho segurando-o perto demais, nem ressecá-lo segurando-o longe demais. À luz baça, o brilho do fogo banhava seu antebraço e o rosto bonito, exagerando a largura da testa e a linha perfeita dos lábios, enfatizando o viço extraordinário da pele. A ansiedade da jovem com o bolinho afastou a usual reserva de sua expressão; ela possuía o mesmo tique da irmã mais nova, de mostrar a ponta da língua quando estava se concentrando, e isso, com um grau tão alto de beleza, que lhe dava uma aparência absurdamente tocante. Ele a olhou com grande complacência, sentindo um estranho aperto no coração, um sentimento sem nome; ela estava noiva e se casaria com seu amigo particular, o comandante Aubrey, da Marinha; era sua paciente, e os dois eram tão íntimos quanto um homem e uma mulher podem ser quando não há noção de galanteria entre eles - mais íntimos, talvez, do que se fossem amantes.

- Este é um bolinho elegante, Sophia, sem dúvida - disse Stephen. - Mas é o último, e também não recomendo outro para você, minha cara. Está ficando gorda demais. Estava magra e digna de pena há menos de seis meses; mas a perspectiva do casamento lhe faz bem, acho. Você deve ter engordado mais de três quilos, e sua pele... Sophia, por que espetou, transpassou outro bolinho? Para quem é esse bolinho? Para quem é esse bolinho? Diga.

- Para mim, meu caro. Jack disse que eu deveria ser firme. Jack ama a firmeza de caráter. Disse que lorde Nelson...

De longe, bem longe acima do ar imóvel e quase congelado, veio o som de uma trompa nas colinas de Polcary. Os dois se viraram para a janela.

- Será que mataram a raposa? - disse Stephen. - Se Jack estivesse em casa o animal saberia.

- Ah, fico tão feliz por ele não estar lá cavalgando aquele grande e malvado cavalo baio! A raposa sempre conseguia escapar dele, e eu sempre ficava com medo de ele quebrar a perna, como o jovem Sr. Saville. Stephen, pode me ajudar a puxar a cortina?

"Como ela cresceu!", disse Stephen consigo mesmo. E em voz alta, enquanto olhava pela janela, segurando o cordão da cortina numa das mãos:

- Qual é o nome daquela árvore? Aquela fina, exótica, no gramado?

- Nós chamamos de árvore-dos-pagodes. Não é uma verdadeira árvore-dos-pagodes, mas é assim que a chamamos. Meu tio Palmer, o viajante, plantou-a; e disse que era muito parecida.

Assim que falou, Sophia se arrependeu - arrependeu-se antes mesmo de a frase sair, porque sabia aonde a palavra poderia levar a mente de Stephen.

Essas intuições inquietas costumam estar certas: para qualquer um que tivesse a mínima ligação com a Índia, a árvore-dos-pagodes devia necessariamente se associar àquele local. Os pagodes eram pequenas moedas de ouro que lembravam as folhas da árvore, e sacudir a árvore-dos-pagodes significava fazer fortuna na Índia, tornar-se um nababo - uma expressão usual. Tanto Sophia quanto Stephen se preocupavam com a Índia porque Diana Villiers supostamente estaria lá, com seu amante e mantenedor Richard Canning. Diana era prima de Sophia e já fora sua rival pelos afetos de Jack Aubrey, e ao mesmo tempo objeto da perseguição ansiosa e desesperada de Stephen - uma jovem vistosa com encantos surpreendentes e uma firmeza de caráter inabalável, que fizera parte da vida dos dois até fugir com o Sr. Canning. Era a ovelha negra da família, claro, a ovelha sarnenta, e a princípio seu nome jamais era mencionado em Mapes; no entanto, era surpreendente o quanto eles sabiam sobre seus movimentos e o tamanho do lugar que ocupava nos pensamentos de todos.

Os jornais tinham lhes dito bastante coisa, já que o Sr. Canning era uma espécie de figura pública, um homem rico com interesses em navegação e na Companhia das Índias Orientais, na política (ele e seus parentes possuíam o comando de três distritos eleitorais, nomeando membros para representá-los, já que não podiam fazê-lo pessoalmente, porque eram judeus) e no mundo social, já que o Sr. Canning tinha amigos entre o pessoal do príncipe de Gales. E os boatos que vinham do outro país, onde viviam seus primos, os Goldsmith, tinham lhes dito mais. Porém, mesmo assim, não possuíam nada parecido com as informações levantadas por Stephen Maturin, já que, apesar de sua aparência pouco mundana e da dedicação sincera à filosofia natural, ele tinha amplos contatos e grande habilidade para usá-los. Sabia o nome do navio da Companhia das Índias Orientais em que a Sra. Villiers tinha viajado, a posição de seu camarote, o nome de suas duas criadas, seus parentes e seu passado (uma era francesa, com irmão soldado que caiu cedo na guerra e agora estava preso em Norman Cross). Sabia o número de contas que ela deixara sem pagar e a quanto montavam; sabia muito sobre a tempestade que assolara de modo violentíssimo as famílias Canning, Goldsmith e Mocatta, e que ainda não havia amainado, já que a Sra. Canning (Goldsmith de nascimento) não tinha noção de uma pluralidade de esposas e convocou todos os seus conhecidos para defendê-la com um zelo furioso e incansável - uma tempestade que induzira Canning a partir para a Índia, em missão oficial ligada aos estabelecimentos franceses, na costa de Malabar, um local raro para juntar pagodes.

Sophia estava certa: esses eram de fato os pensamentos que inundaram a mente de Stephen ao ouvir o nome daquela árvore infeliz - esses e muitos outros, enquanto permanecia sentado em silêncio perto do brilho do fogo. Não que esses pensamentos tenham tido de viajar muito; na maior parte do tempo pairavam a pouca distância, prontos para aparecer de manhã quando ele acordava, perguntando-se por que estava tão oprimido de sofrimento; e quando não estavam imediatamente presentes seu lugar era marcado por uma dor física entre a cintura e o peito, numa área que ele poderia cobrir com a palma da mão.

Numa gaveta secreta de sua escrivaninha, o que a tornava difícil de abrir ou fechar, estavam relatórios etiquetados com títulos como Villiers, Diana, viúva de Charles Villiers, falecido em Bombaim, Esquire, e Canning, Richard, da Park Street e Coluber House, co. Bristol. Esses dois eram tão cuidadosamente documentados quanto qualquer suspeito de trabalhar para os serviços de inteligência de Bonaparte; e ainda que a maior parte dessa massa de papéis tivesse vindo de fontes benevolentes, boa quantidade fora adquirida do modo comum nesse tipo de negócio, e custara um bom dinheiro. Stephen não havia poupado despesas para se tornar mais infeliz, deixando ainda mais clara sua posição de amante rejeitado.

- Por que acumulo todas essas feridas? - perguntava-se. - Com que motivo? Sem dúvida, na guerra, qualquer obtenção de informações é um avanço e posso chamar isso de guerra particular. É para me persuadir de que ainda estou lutando, apesar de ter sido expulso do campo? Bastante racional, mas sem dúvida falso, falastrão demais. - Ele pronunciava essas observações em catalão, já que, sendo uma espécie de poliglota, tinha um modo de adequar seus pensamentos à língua com a qual eles mais combinavam; sua mãe era catalã, o pai um oficial irlandês, e o catalão, o inglês, o francês e o castelhano lhe vinham com tanta naturalidade quanto o respirar, sem preferência, a não ser pelo assunto.

"Como eu gostaria de ter segurado a língua", pensou Sophia. Em seguida olhou ansiosa para Stephen, ali sentado, curvado e olhando para a caverna vermelha abaixo do toro de lenha. "Coitadinho", pensou, "como ele precisa de uns remendos, como precisa de alguém que cuide dele! Realmente não foi feito para andar pelo mundo sozinho; isso é difícil demais para pessoas pouco mundanas. Como ela pode ter sido tão cruel? Foi como bater numa criança. Uma criança. Como o estudo adianta pouco para os homens! Ele não sabe quase nada; só precisaria ter dito: 'seja boazinha e se case comigo', e ela gritaria: 'ah, sim, por favor'. Eu lhe disse isso. Não que ela jamais fosse fazê-lo feliz, a..." Vaca era a palavra que lutava para se fazer ouvir; mas lutou em vão. "Nunca mais amarei a árvore-dos-pagodes. Estávamos tão bem juntos, e agora é como se o fogo tivesse apagado... e vai se apagar mesmo, a não ser que eu ponha mais um pedaço de lenha. E está bem escuro." Sua mão foi em direção à corda da sineta para pedir velas, hesitou e voltou ao colo. "É terrível como as pessoas sofrem", pensou. "Como tenho sorte! Às vezes isso me aterroriza. Querido Jack..." Seu olhar interior se encheu com uma imagem luminosa de Jack Aubrey, alto, ereto, alegre, transbordando de vida e afeição direta e explícita, o cabelo louro caindo sobre a dragona de capitão-de-mar-e-guerra e o rosto corado, marcado pelo tempo, aberto num riso intensamente divertido. Ela podia ver a cicatriz maligna que ia do ângulo do maxilar até o couro cabeludo, cada detalhe do uniforme, a medalha do Nilo e a espada curva e pesada que o Fundo Patriótico lhe dera por ter afundado o Bellone. Os olhos azuis quase desapareciam quando ele ria - só dava para ver fendas brilhantes, ainda mais azuis no jorro escarlate da alegria. Jamais houvera alguém com quem ela se divertisse tanto - ninguém jamais rira assim.

A visão foi despedaçada pela abertura da porta quando um jorro de luz vindo do corredor mostrou a forma grossa e atarracada da Sra. Williams ali parada, junto à passagem, e sua voz alta exclamou:

- O quê, o que é isso? Sentados sozinhos no escuro?

Seus olhos saltaram de um ao outro para confirmar as suspeitas que vinham crescendo em sua mente desde que o silêncio caíra entre eles - um silêncio do qual ela possuía perfeito conhecimento, já que estivera sentada na biblioteca perto de um armário no lambri: quando a porta do armário era aberta não se podia deixar de ouvir o que era dito na pequena sala de estar. Mas a imobilidade deles, seus rostos honestos e surpresos virados em sua direção convenceram a Sra. Williams de seu erro, e ela disse rindo:

- Uma dama e um cavalheiro sentados sozinhos no escuro, isso jamais aconteceria no meu tempo! Os cavalheiros da família teriam chamado o Dr. Maturin para dar explicações. Onde está Cecilia? Deveria estar fazendo companhia a vocês. No escuro... mas ouvi dizer que você estava pensando nas velas, Sophia. Boa menina. O senhor não acreditaria, doutor - disse ela, virando-se para o hóspede com uma expressão educada; pois ainda que o Dr. Maturin nem de longe pudesse ser comparado com seu amigo, o comandante Aubrey, sabia-se que ele era possuidor de uma banheira de mármore e um castelo na Espanha (um castelo na Espanha!) e podia muito bem servir para sua filha mais nova. Se Cecilia estivesse sentada no escuro com o Dr. Maturin ela jamais teria entrado de supetão. - O senhor não acreditaria em como as velas aumentaram de preço. Sem dúvida Cecilia teria tido a mesma idéia. Todas as minhas filhas foram criadas com um rígido senso de economia, Dr. Maturin; nesta casa não há desperdício. No entanto, se fosse Cecilia no escuro com um rapaz, isso jamais seria feito; o jogo não valeria a vela, de jeito nenhum! Não, senhor! O senhor jamais acreditaria em como o preço da cera subiu desde o início da guerra. Algumas vezes me sinto tentada a usar velas de sebo; mas, por mais pobres que sejamos, não consigo me obrigar a isso, pelo menos não nos cômodos públicos. No entanto tenho duas velas acesas na biblioteca e vocês podem ficar com uma. John não precisa acender os candelabros de lá. Fui obrigada a ter duas, Dr. Maturin, porque estive sentada com meu contador todo esse tempo, quase todo esse tempo. Os escritos, os contratos e os acordos são longos e complicados demais, e nesses assuntos sou uma criança. - A propriedade da criança ultrapassava em muito as fronteiras paroquianas, e os filhos dos arrendatários, mesmo longe em Starveacre, ao ouvirem dizer "A Sra. Williams vem pegar você", ficavam mudos de horror. - Mas o Sr. Wilbraham faz algumas reflexões bastante severas a todos nós por nossas posturas dilatórias, como ele diz, porém tenho certeza de que não é nossa culpa, com o comandante Aubrey estando tão longe.

Ela saiu rapidamente para pegar a vela, franzindo a boca. Essas negociações estavam se alongando, não devido a qualquer petulância da parte do Sr. Wilbraham, mas por causa da determinação férrea da Sra. Williams de não abrir mão da virgindade da filha ou de suas dez mil libras até que uma "provisão adequada", um acordo nupcial, fosse assinado, selado e, acima de tudo, o dinheiro vivo fosse entregue. Era isso que segurava o fogo de modo tão estranho: Jack havia concordado com todas as condições, mesmo sendo rapaces; havia amarrado suas propriedades, seus pagamentos, perspectivas e futuros prêmios provenientes de presas marítimas em benefício de sua viúva e de qualquer fruto de sua união para sempre, do modo mais liberal, como se fosse um pobretão, mas mesmo assim o dinheiro vivo não apareceu, e nenhum passo daria a Sra. Williams até que o mesmo estivesse em suas mãos, não sob a forma de promessas, mas em ouro cunhado ou seu equivalente de fundo de cobre, garantido pelo Banco da Inglaterra.

- Pronto - disse ela, voltando e olhando incisivamente para o pedaço de lenha que Sophia tinha posto no fogo. - Um já basta, não é? A não ser que vocês queiram ler. Mas imagino que ainda tenham muito que conversar.

- Sim - concordou Sophia assim que estavam de novo a sós. - Há algo que eu gostaria de lhe perguntar. Estive tentando puxá-lo de lado desde que chegou... É pavoroso ser tão ignorante, e eu não deixaria que o comandante Aubrey soubesse disso por nada nesse mundo; e não posso perguntar à minha mãe. Mas com você é diferente.

- Pode-se contar tudo a um médico - disse Stephen, e um ar de gravidade profissional, anônima, surgiu em seu rosto, parcialmente se sobrepondo à expressão de forte afeto pessoal.

- Um médico? - exclamou Sophia. - Ah, sim. Claro, certamente. Mas o que eu realmente queria falar, Stephen, é dessa guerra. Ela já está durando uma eternidade, afora aquela pequena interrupção. Uma eternidade, e, ah, como eu gostaria que ela parasse!, anos e anos, desde que posso me lembrar; mas acho que nem sempre prestei tanta atenção quanto deveria. Claro, sei que os franceses é que são maus; mas há todas essas pessoas que ficam indo e vindo, os austríacos, espanhóis, russos. Escute, agora os russos são bons? Seria muito chocante, sem dúvida seria traição, colocar as pessoas erradas nas minhas preces. E há todos aqueles italianos, e o coitado do Papa. Mesmo na véspera de partir, Jack mencionou Pappenburg. Ele tinha hasteado a bandeira de Pappenburg, como um ardil de guerra; portanto Pappenburg deve ser um país. Fui de uma falsidade desprezível e só assenti, parecendo o mais esperta que pude, e disse: "Ah, Pappenburg". Estou com tanto medo de que ele me ache ignorante! Coisa que sou, claro, mas não posso suportar que ele saiba. Tenho certeza que há quantidades de moças que sabem onde fica Pappenburg, e Batávia, e essa tal de República da Ligúria; mas nunca estudamos lugares assim com a Srta. Blake. E esse tal reino das Duas Sicílias, consigo encontrar uma no mapa, mas não a outra. Stephen, por favor, me fale sobre a situação atual do mundo.

- É a situação do mundo, minha cara? - disse Stephen, rindo, sem restar qualquer ar profissional. - Bem, por enquanto é bastante simples. Do nosso lado temos a Áustria, a Rússia, a Suécia e Nápoles, que é o mesmo que as suas Duas Sicílias; e do lado dele há toda uma nuvem de pequenos estados, e a Baviera, a Holanda e a Espanha. Não que essas alianças tenham muita conseqüência para um lado ou para o outro: os russos estavam conosco, depois ficaram contra nós até estrangularem o czar, e agora estão conosco; e ouso dizer que mudarão de novo, quando lhes der na veneta. Os austríacos saíram da guerra em 1897 e depois de novo em 1901, depois de Hohenlinden; a mesma coisa pode acontecer de novo a qualquer dia. O que nos importa são a Holanda e a Espanha, porque têm navios; e se algum dia esta guerra for vencida, deve ser vencida no mar. Bonaparte tem uns quarenta e cinco navios de linha, e nós temos uns oitenta, o que parece bastante bom. Mas os nossos estão espalhados por todo o mundo, e os dele não. Os espanhóis têm vinte e sete, para não falar dos holandeses; portanto é essencial impedir que eles se juntem, porque se Bonaparte puder reunir uma força superior no Canal da Mancha, mesmo que por pouco tempo, seu exército de invasão poderá atravessar, que Deus não permita. Por isso Jack e lorde Nelson estão navegando de um lado para o outro ao largo de Toulon, contendo Monsieur de Villeneuve com seus onze navios de linha e sete fragatas, impedindo que eles se juntem aos espanhóis em Cartagena, Cádiz e Ferrol; e é lá que irei me juntar a ele assim que tiver ido a Londres para resolver um ou dois problemas de finanças e comprar uma grande quantidade de garança. Portanto, se tiver algum recado, esta é a hora; porque, Sophia, eu já estou indo.

Ele se levantou espalhando migalhas, e o relógio no armário preto marcou a hora inteira.

- Ah, Stephen, você precisa ir? - exclamou Sophia. - Deixe-me escová-lo um pouco. Não vai ficar para o jantar? Por favor, fique para o jantar, vou lhe fazer queijo tostado.

- Não, minha cara, apesar de você ter sido muito gentil. - Stephen ficou parado como um cavalo enquanto ela o escovava, virava o colarinho e ajeitava a gravata. Desde sua desilusão ele ficara mais descuidado com as roupas; tinha desistido da prática de escová-las ou dar lustro nas botas, e nem o rosto nem as mãos estavam particularmente limpos. - Há uma reunião da Sociedade Entomológica à qual talvez eu consiga chegar, se andar rápido. Pronto, pronto, minha cara, já está bom: nossa! Não estou indo para o tribunal. Os entomologistas não se preocupam com a beleza. Agora me dê um beijo, como uma boa menina, e diga o que devo dizer, que recados devo dar ao Jack.

- Como eu queria, ah, como eu queria estar indo com você... Acho que não adiantaria implorar para ele ser prudente, para não correr riscos, não é?

- Vou mencionar isso, se você quiser. Mas acredite, querida, Jack não é um homem imprudente, pelo menos no mar. Jamais corre riscos sem pesá-los com cuidado, ele gosta demais de seu navio e de seus homens, gosta demais, para jogá-los num perigo sem muita consideração anterior. Não é um daqueles bandoleiros loucos que atacam de qualquer jeito e engolem fogo.

- Ele não faria nada precipitado?

- Jamais na vida. É verdade, você sabe; é bem verdade - acrescentou, sabendo que Sophia não estava totalmente persuadida de que Jack no mar e em terra eram duas pessoas diferentes.

- Bem - disse ela, e fez uma pausa. - Como parece demorar! Tudo parece demorar tanto!

- Bobagem - respondeu Stephen com um ânimo fingido. - O Parlamento vai suspender os trabalhos daqui a algumas semanas; o comandate Hamond voltará ao seu navio e Jack será jogado na praia de novo. Você o verá tanto quanto seu coração desejar. Agora, o que devo dizer?

- Diga que o amo muito, Stephen, por favor; e peço, peço para você também se cuidar muitíssimo.

O Dr. Maturin entrou na reunião da Sociedade Entomológica enquanto o reverendo Sr. Lamb iniciava a leitura de seu artigo sobre Certos Besouros Não-identificados Encontrados na Praia, em Prigle-juxta-Mare, no Ano de 1799. Sentou-se nos fundos e prestou atenção durante um tempo; mas o cavalheiro se afastou do tema (como todo mundo tinha certeza que ele faria) e começou a arengar sobre a hibernação das andorinhas; porque encontrara uma nova base para sua teoria - não somente elas voavam em círculos sempre decrescentes, se conglobavam numa massa e mergulhavam até o fundo de lagos calmos, mas também se refugiavam nos poços de minas de estanho, "de minas de estanho da Cornualha, senhores!" A atenção de Stephen se desviou e ele olhou para os entomologistas inquietos; vários seus conhecidos - o digno Dr. Musgrave, que lhe dera de presente uma bela carena quindecimpunctata; o Sr. Tolston, de fama devida aos lucanos; Eusebius Piscator, aquele sueco erudito - e sem dúvida aquelas costas gorduchas e a trança empoada pareciam familiares, não é? Era estranho como nossos olhos deviam captar e armazenar incontáveis medidas e proporções; umas costas eram quase tão reconhecíveis quanto um rosto. Isso também se aplicava ao passo, à postura, à posição da cabeça; que incontáveis referências de cada vez! Essas costas estavam viradas para as suas com uma torção estranha, não-natural, e a mão esquerda do dono estava erguida, pousada no queixo de modo a esconder o rosto, sem dúvida era essa torção que havia atraído seu olhar; no entanto, em todos os seus contatos, ele jamais tinha visto Sir Joseph se retorcer numa atitude assim.

- ... portanto, senhores, acredito que posso declarar, com confiança, que a hibernação das andorinhas, e de todos os outros hirundinos, está conclusivamente provada - disse o Sr. Lamb com um olhar desafiador para a platéia.

- Tenho certeza de que todos estamos gratos para com o Sr. Lamb - disse o presidente, numa atmosfera de descontentamento geral, com alguns pés sendo arrastados e murmúrios. - E mesmo achando que agora temos pouco tempo, que talvez nem todos os artigos possam ser lidos, permitam-me chamar Sir Joseph Blain para nos obsequiar com suas observações sobre um verdadeiro ginandromorfismo recentemente acrescentado ao seu Gabinete.

Sir Joseph se levantou em seu lugar e pediu desculpas - tinha deixado as anotações em casa -, não estava perfeitamente bem e não esgotaria a paciência dos participantes do encontro tentando falar sem elas. Pediu perdão, mas teria de se retirar. Era apenas uma indisposição passageira, disse para tranqüilizar os presentes. Os presentes não teriam se importado se ele fosse um grande leproso cheio de manchas. Três entomologistas já estavam de pé, ansiosos pela imortalidade nos Anais da sociedade.

"O que devo deduzir disso?", perguntou-se Stephen, enquanto Sir Joseph passava com um cumprimento distante; e durante o relato seguinte sobre besouros luminosos recebidos recentemente do Suriname (um relato fascinante, que ele certamente deveria ler com grande atenção mais tarde) um pressentimento frio se formou em seu peito.

Saiu da reunião carregando esse pressentimento; mas não tinha andado cem metros antes que um mensageiro discreto o abordasse e entregasse um cartão com uma cifra e um convite não ao apartamento oficial de Sir Joseph, e sim a uma casinha atrás do mercado Shepherd.

- Que bom o senhor ter vindo - disse Sir Joseph, fazendo Stephen sentar-se diante do fogo no cômodo que era claramente biblioteca, escritório e sala de estar; era confortável, até mesmo luxuosa, no estilo de cinqüenta anos atrás; e caixas com borboletas se alternavam com imagens pornográficas nas paredes - aquilo era enfaticamente uma casa privada. - Que gentileza. - Ele estava nervoso e sem jeito, e disse de novo: - Que gentileza! - Stephen não falou nada. - Pedi que viesse aqui porque este é meu... devo dizer, refúgio particular, e acho que lhe devo uma explicação em particular. Quando o vi esta noite não o estava esperando; minha consciência me deu um tranco rude, me fez adernar estranhamente porque tenho notícias tremendamente desagradáveis para você, notícias que preferiria mandar outro homem lhe entregar, mas isso necessariamente me cabe. Eu havia me preparado para dá-las em nossa reunião de amanhã de manhã; e devo dizer que faria isso muito bem. Mas ao vê-lo subitamente ali, naquela atmosfera... Resumindo - disse ele, pousando o atiçador com que vinha mexendo na lareira -, houve uma séria indiscrição no Almirantado. Seu nome foi citado e enfatizado numa reunião geral, em conexão direta com a ação ao largo de Cádiz. - Stephen assentiu com a cabeça, mas continuou sem dizer nada. Sir Joseph, olhando-o disfarçadamente, continuou: - Claro, abafei a indiscrição imediatamente e depois dei a entender que o senhor estava a bordo por acaso, que ia para alguma região indefinida do Oriente numa missão científica ou quase diplomática na qual seria necessária uma patente devido ao seu status, por suas negociações eventuais, citando o precedente de Banks e Halley, que a conexão com o incidente foi puramente fortuita e casual, ocasionada apenas pela necessidade de pressa extrema. Coloquei isso como a história verdadeira, muito mais secreta do que a interceptação, conhecida apenas pelos iniciados e que não deveria ser divulgada de modo algum: isso deveria servir para a maioria dos marinheiros e civis presentes. Mas resta o fato de que, apesar de meus esforços, o senhor foi de certa forma exposto; e isso necessariamente questiona todo o nosso programa.

- Quem eram os cavalheiros presentes? - perguntou Stephen. Sir Joseph lhe passou uma lista. - Uma reunião considerável... Há uma estranha leviandade - disse com frieza - uma irresponsabilidade estranha e débil em jogar desse modo com a vida de homens e com todo um sistema de inteligência.

- Concordo totalmente - exclamou Sir Joseph. - Foi monstruoso. E digo isso sentindo mais dor ainda porque a culpa é minha. Eu havia posto o primeiro lorde a par do assunto e contava totalmente com a discrição dele. Mas sem dúvida tinha me permitido ficar acostumado demais com um chefe em quem podia confiar sem questionamentos, nunca houve um homem mais discreto do que lorde Melville. Um governo parlamentarista é uma coisa lamentável para o setor de informações: novos homens entram, mais políticos do que profissionais, e todos ficamos sem saída. A ditadura é o único sistema que serve para a espionagem: Bonaparte é muito, muito mais bem servido do que Sua Majestade. Mas não devo me esquivar de um segundo assunto infeliz. Ainda que isso se torne questão de notoriedade pública nos próximos dias, acho que devo lhe dizer pessoalmente que o conselho pretende tratar o tesouro espanhol como direitos da Coroa, isto é, não será distribuído como prêmio por captura. Fiz tudo ao meu alcance para evitar essa decisão, mas acho que é irrevogável. Digo-lhe isso com a leve esperança de impedi-lo de se comprometer com qualquer curso de ação a partir da suposição contrária; mesmo uns poucos dias de alerta podem ser melhor do que nenhum. Também lhe digo, lamentando terrivelmente, porque sei bem que você tem outro interesse nessa... nessa questão. Só posso esperar, infelizmente sem muita convicção, que meu alerta possa ter algum... você me entende. E quanto às minhas próprias expressões de extremo pesar, intensa mortificação e preocupação, dou-lhe minha palavra de que nem sei como expressá-las com um décimo da força que elas exigem.

- O senhor é muito bom - disse Stephen - e me sinto muito sensibilizado por essa demonstração de confiança. Não fingirei que a perda de uma fortuna possa ser questão de indiferença para qualquer um: no momento não sinto qualquer emoção além de uma pequena vexação, mas sem dúvida sentirei com o tempo. Mas o interesse ao qual o senhor se refere de modo tão amável é outra coisa: permita que eu deixe claro. Eu quis particularmente servir ao meu amigo Aubrey. O representante dele sumiu com todo o seu dinheiro proveniente de presas de guerra; o tribunal de apelações reverteu a condenação de duas embarcações neutras, deixando-o com onze mil libras de dívidas. Isso aconteceu quando ele estava a ponto de ficar noivo de uma jovem tremendamente amável. Os dois são profundamente ligados um ao outro, mas como a mãe da moça, uma viúva com propriedades consideráveis sob seu controle, é uma avarenta profundamente estúpida, sovina, não-liberal, ávida, tenaz, unha-de-fome, uma avarenta sórdida e tirana, não há esperança de casamento sem que a situação esteja resolvida e ele possa fazer pelo menos algum tipo de acordo financeiro com ela. Esta era a posição que eu me vangloriava de ter resolvido; ou melhor, que o senhor, um destino gentil e a conjectura haviam resolvido para mim. O que vou dizer agora a Aubrey quando encontrá-lo em Minorca? Alguma coisa resultará para ele de toda esta ação?

- Ah, sim, certamente; certamente haverá um pagamento ex gratia. De fato, ele pode pagar as dívidas que o senhor menciona, ou quase, mas não será uma riqueza. Ah, não, longe disso. Mas, meu caro, você fala em Minorca. Estou percebendo que quer continuar com nosso plano original, apesar desses contratempos terríveis e desnecessários?

- Creio que sim. - Stephen examinou a lista de novo. - Há muita coisa a ganhar com nossos contatos recentes e muita coisa a perder sem eles... Nesse caso me parece essencialmente uma questão de tempo. Quanto às conversas comuns e aos boatos confidenciais, com toda probabilidade estarei adiante deles, já que parto amanhã à noite. É improvável que informações desse tipo se movam tão rápido quanto um viajante determinado; e de qualquer modo o senhor cuidou dos falastrões mais óbvios. Este é o único nome do qual tenho medo - apontando para a lista. - Como o senhor sabe, ele é pederasta. Não que eu tenha nada contra a pederastia, pessoalmente acho que cada um deve decidir por si mesmo onde está a beleza e, certamente, quanto mais afeição neste mundo, melhor, mas é do conhecimento comum que alguns pederastas são sujeitos a pressões que não se aplicam aos outros homens. Se os encontros deste cavalheiro com Monsieur de La Tapetterie puderem ser discretamente vigiados, e acima de tudo se La Tapetterie pudesse ser neutralizado durante uma semana, eu não hesitaria em ir adiante com nossos arranjos anteriores. Mesmo sem essas precauções duvido que eu devesse cancelar; estas são meras conjecturas, afinal de contas. E não adianta mandar Osborne ou Schikaneder. Gomez não porá a cabeça nas mãos de ninguém, além das minhas; e sem esse contato o novo sistema se desmorona.

- Verdade. E, claro, você entende a posição local muito melhor do que qualquer um de nós. Mas não gosto de pensar em você correndo esse risco a mais.

- É muito pequeno, se é que de fato existe agora. É desprezível se eu tiver ventos favoráveis e o senhor puder calafetar esse vazamento, esse vazamento puramente conjectural. Já que esta viagem específica não tem peso, comparada com os riscos cotidianos do trabalho. Depois, se as conversas bobas tiverem o efeito usual, sem dúvida ficarei sem utilidade durante algum tempo; pelo menos até o senhor me reabilitar, ha, ha, com a missão quase-diplomática ou científica ao cã da Tartária. Quando voltar publicarei artigos tão fantásticos sobre os criptogramas de Kamschatka que ninguém jamais verá de novo a marca da espionagem em minha cabeça.
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página