Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
01/11/2006 - 19h36

Taleban capta simpatizantes por US$ 10 semanais, diz jornalista

Publicidade

ANDREA MURTA
da Folha Online
LIGIA BRASLAUSKAS
Editora de Mundo da Folha Online

Desde o início deste ano, o grupo radical islâmico Taleban --aquele que teve seu lado mais cruel exposto em diferentes filmes e livros-- tem retomado o controle em algumas regiões no Afeganistão e ameaçado pôr fim ao que a jornalista norueguesa Asne Seierstad, 36, relatou como liberdade em seu best-seller "O Livreiro de Cabul" [como pintar as unhas e ler livros sem páginas censuradas].

Em entrevista à Folha Online nesta quarta-feira, a jornalista e escritora --única mulher a cobrir os conflitos em Cabul (Afeganistão), em 2001, e os bombardeios a Bagdá, em 2003-- disse que se nada for feito para ajudar o Afeganistão, além do envio de mais soldados, a população pode se voltar ao que mais rejeitava: o Taleban --e por apenas US$ 10 por semana [financiados pelo mercado de papoula].

Divulgação
A jornalista norueguesa Asne Seierstad diz que o Taleban pode reconquistar o Afeganistão
A jornalista norueguesa Asne Seierstad diz que o Taleban pode reconquistar o Afeganistão
Seierstad refere-se à infra-estrutura e à melhora da qualidade de vida dos afegãos, minada após a invasão americana. "No sul do Afeganistão não há nenhuma indústria, não há quase nenhuma agricultura por causa da seca, nada está funcionando. Se você é um pai de família sem emprego e sem dinheiro é muito fácil se tornar um 'soldado' taleban por US$ 10 por semana. Pelo menos você poderá evitar que seus filhos passem fome", explica.

A jornalista visita o Brasil para divulgar seu mais recente trabalho, "101 Dias em Bagdá", em que relata a experiência dos iraquianos percebida durante os 101 dias em que passou no país no início da Guerra do Iraque, em 2003. Apesar de não se aprofundar nos temas políticos em sua obra, os relatos do livro demonstram o impacto do conflito no dia-a-dia dos iraquianos.

Na opinião de Seierstad, o fracasso dos EUA no Iraque se deve ao despreparo e à rejeição dos próprios americanos frente à população [iraquiana].

"Acho que os americanos foram extremamente arrogantes ao considerar que apenas sua presença seria suficiente para conseguir a paz (...) Me lembro de um episódio em que uma mulher iraquiana se atirou nos braços de um soldado aos gritos. Ele não sabia o que ela estava dizendo e reagiu com violência. Ela caiu no chão com a saia levantada. Ali acabou o apoio dela às tropas americanas."

A jornalista e escritora também comparou os diferentes conflitos em que esteve presente, disse que é fácil se acostumar com a burga [véu tradicional que cobre todo o corpo] e que a imprensa norueguesa noticiou a ausência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos debates do primeiro turno das eleições no Brasil.

Além de São Paulo e Rio de Janeiro, Seierstad visitará Ouro Preto (MG), onde participa do Fórum das Letras de Ouro Preto (Flop), que será realizado entre hoje e domingo (5).

Leia a seguir íntegra da entrevista concedida à Folha Online.

Folha Online - Você disse que a invasão americana ao Iraque foi cheia de erros e que as tropas não se preocupavam com os civis. Em sua opinião, quais foram as falhas que os americanos cometeram?

Asne Seierstad
- Para começar, a invasão em si foi um erro. Não foi considerado o delicado equilíbrio entre os diferentes grupos religiosos e étnicos do Iraque. Acho que os americanos foram extremamente arrogantes ao considerar que apenas sua presença seria suficiente para conseguir a paz.

Um dos erros mais visíveis no começo foi que, quando a guerra começou e não havia eletricidade, os saques eram muito freqüentes. Nisso Bagdá não é diferente de Los Angeles, quando acaba a luz as pessoas roubam tudo. E os americanos simplesmente ficaram parados, olhando. Não fizeram nada. Estavam saqueando as casas das pessoas, e dentre todos os prédios da cidade, os EUA só se preocuparam em proteger os palácios de Saddam --onde ficava o quartel-general da ONU-- e o Ministério do Petróleo. Os Ministérios da Educação e da Comunicação foram saqueados.

As pessoas buscavam as tropas americanas procurando proteção, porque bandos estavam invadindo seus bairros, e não conseguiam ajuda. Me lembro de um episódio em que uma mulher iraquiana se atirou nos braços de um soldado aos gritos. Ele não sabia o que ela estava dizendo e reagiu com violência. Ela caiu no chão com a saia levantada. Ali acabou o apoio dela às tropas americanas.

Dúzias de episódios semelhantes aconteciam todos os dias. Aquela mulher queria a presença dos americanos ali, e eles a dispensaram. Os civis, inicialmente, apoiavam as tropas, porque Saddam Hussein [ex-ditador iraquiano] era um homem muito odiado. Mas a brutalidade das ações dos americanos minou a tolerância das pessoas.

O soldados americanos não se importavam em invadir as casas das pessoas à noite, não se importavam se as mulheres estavam propriamente vestidas ou não. Essas coisas são terríveis na cultura árabe. Claro, se você está procurando terroristas, não se preocupa muito se as mulheres estão propriamente vestidas antes de entrar numa casa, mas para os iraquianos, o fato de os soldados não os respeitarem se tornou uma questão fundamental.

Folha Online - Politicamente, quais os principais erros de cálculo da estratégia americana no país?

Seierstad
- No nível político, o fato de que eles não queriam a colaboração de ninguém do antigo regime foi o principal erro. Só que todo mundo fazia parte do antigo regime, era preciso fazer parte do partido Baath para conseguir um emprego. E eles simplesmente afastaram essas pessoas. Aí, centenas de milhares de homens que costumavam andar armados não tinham emprego. Só o que eles sabem é empunhar uma arma.

Quanto de nossa identidade está ligada a nosso emprego? Muitos desses homens se voltaram para os insurgentes porque estavam bravos e porque sabiam atirar. Talvez eles pudessem ter sido integrados à nova força de segurança, por exemplo.

Eles também se apoiaram demais nos xiitas e afastaram os sunitas, que tradicionalmente lideravam o país. Os americanos jogaram um grupo contra o outro, e não deveriam ter feito isso.

Folha Online - Você testemunhou outras invasões de forças estrangeiras e americanas, como no Afeganistão. A invasão do Iraque foi especialmente descuidada?

Seierstad
- Foram muito diferentes. No Afeganistão, não houve uma invasão real, o que houve foi uma campanha de bombardeios aéreos contra os talebans. Não havia americanos em solo afegão até depois que o Taleban foi deposto, com a ajuda da Aliança do Norte, que tinha suas próprias tropas. Já no Iraque eles mesmos [americanos] entraram porque não havia tropas locais para usar como apoio.

Outro fator é que no no Iraque a intenção era realmente ocupar o país. Os afegãos mantiveram mais poder.

Folha Online - Em "O livreiro de Cabul", não há quase nenhuma menção à presença de tropas internacionais na capital. Em que medida as forças de segurança estrangeiras eram visíveis e faziam parte da vida cotidiana dos afegãos?

Seierstad
- Não eram nem um pouco visíveis. Era completamente diferente do Iraque. E não eram americanos, havia noruegueses, holandeses e soldados de várias nacionalidades. Eles estavam apenas mantendo a segurança, praticamente não lutavam. É muito diferente ser um Exército invasor que luta e mata. Em Cabul, quando eu estava lá, as forças internacionais basicamente se preocupavam em manter os bairros calmos.

E eles eram bem-vindos. Em Cabul, as pessoas gostavam dos soldados. Passei um dia com tropas norueguesas, e eles iam, de uniforme militar, comprar refrigerantes, andar pela cidade. Isso é uma coisa que não seria possível no Iraque. Os afegãos eram bem menos resistentes. Cabul costumava ser governada pelo Taleban, e as pessoas não gostavam do regime. Para eles, era possível falar em "libertação" após a invasão.

Folha Online - A guerra no Afeganistão não parece próxima de um fim. Oficiais do Exército americano afirmaram que pode demorar mais uma década até que deixem o país...

Seierstad
- Bom, pode levar um século, se eles quiserem permanecer lá. Eu me lembro dos americanos dizendo que iriam adiar as eleições no Iraque porque achavam que os iraquianos "não estavam prontos para a democracia". E adiaram por seis meses. Hoje dizem que é uma década, amanhã dirão que são alguns meses...

Acho que é muito difícil enfrentar o Taleban militarmente. E acho que os extremistas estão aumentando sua força no Afeganistão. Se construirmos escolas, indústrias, qualquer coisa --eles precisam de tudo-- eles terão uma alternativa. Seria um jeito melhor, mais barato e mais decente de minar o Taleban.

Folha Online - O ressurgimento do Taleban no sul e a continuidade dos conflitos pode significar um crescimento do apoio popular ao antigo regime e a uma retomada de seu poder?

Seierstad
- Se não fizermos nada para ajudar o Afeganistão além de enviar soldados, sim. Definitivamente. Por que é que somos tão generosos quando queremos gastar na guerra e não somos nada generosos quando queremos construir a paz? E o que é construir a paz senão reconstruir a sociedade?

No sul do Afeganistão não há nenhuma indústria, não há quase nenhuma agricultura por causa da seca, nada está funcionando. Se você é um pai de família sem emprego e sem dinheiro é muito fácil se tornar um "soldado" taleban por US$ 10 por semana. Pelo menos você poderá evitar que seus filhos passem fome. É claro que você vai lutar.

Não é que o Taleban consegue apoio popular porque as pessoas querem se juntar a eles por questões ideológicas. Os civis aderem à milícia por necessidade. Não há mais ninguém que paga salários.

Folha Online - Você também cobriu a segunda guerra da Tchetchênia, em 1999. À época, foi possível testemunhar abusos nas ações militares?

Seierstad
- Eu estive lá há muito tempo, mas sim, o Exército russo era extremamente bruto. Há muita coisa documentada que mostra como as vilas eram massacradas e as pessoas eram torturadas. Há estupros, e vida na Tchetchênia ainda é brutal.

Isso continua. A guerra praticamente acabou, mas ainda há conflitos, e o presidente tchetcheno [Alu Alkhanov] governa com "mão de ferro". Ele faz o que quer. Apesar de tchetcheno, ele é um presidente leal à Rússia.

Este é um conflito que está infelizmente "esquecido". Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, os olhos do mundo se voltaram para o Oriente Médio. Acho que há um acordo secreto entre os presidentes Bush (EUA) e Putin (Vladimir, Rússia), no qual combinaram que um não criticará o outro. Parecem ser bons amigos.

Folha Online - Apesar de ter trabalhado em Kosovo, na Tchetchênia e no Afeganistão, você disse que nunca trabalhou em condições tão difíceis quanto as de Bagdá. Qual era a pior parte de viver ali durante a guerra?

Seierstad
- Quando disse isso, eu me referia às condições de trabalho. Era muito difícil conseguir que as pessoas falassem comigo. E também, claro, havia muitas restrições, não só burocráticas mas também da própria guerra. Não podia me mover com muita liberdade.

As pessoas estavam com muito medo de falar com a imprensa, isso era o pior. Como encontrar histórias se ninguém fala nada? E há a censura implícita do tradutor. Mas há sempre brechas e possibilidades de encontrar histórias. Comparadas ao Iraque, as outras guerras em que trabalhei apresentaram muitos desafios, e é perigoso. Mas as pessoas falam, e é isso que você precisa.

Folha Online - Houve situações em que os conflitos afetavam menos diretamente a vida cotidiana da população?

Seierstad
- É difícil comparar. Uma guerra é tão instável. Se o conflito está num vilarejo vizinho, as pessoas sabem que vai chegar até eles, só não sabem quando. Isso afeta toda a sociedade, as pessoas têm medo de sair às ruas, as escolas fecham... e há sempre o medo de ser morto. Todas as guerras são diferentes, não sei dizer um lugar onde a guerra foi "menos pior".

Folha Online - Qual é a dificuldade para se conseguir alimento em coberturas de guerra? Há alguma comida que te agradou e que às vezes você sente falta?

Seierstad
- Não dá para ir a restaurantes. Geralmente ficávamos hospedados nas casas de moradores locais e pagávamos a eles por comida caseira. Muito freqüentemente, a família se mudava da casa e ia morar com parentes, mas à noite, um dos homens [da família] voltava à nossa casa e preparava uma refeição.

Não sinto falta da comida afegã. É muito pesada. Há sempre carne de carneiro, feijão. Já a comida no Iraque é muito parecida com a do Líbano. É a comida árabe típica, que posso encontrar em restaurantes em Oslo ou em São Paulo.

Folha Online - O verdadeiro livreiro de Cabul, seu anfitrião no Afeganistão, foi para a Noruega tentar abrir um processo contra você. Segundo ele, o livro desrespeita o islã e não representa verdadeiramente sua família. Como está essa esta situação?

Seierstad
- Ele fala em me processar há três anos, mas nunca entrou com o pedido na Justiça. Também já está em seu terceiro advogado. Há uma data-limite nessas coisas [três anos], e eles precisam entrar com o processo antes que o prazo expire. Um processo é complicado, custa muito dinheiro. Eles querem pedir a Justiça algum acordo entre as partes. Vamos ter uma audiência em Oslo no próximo dia 14.

Hoje de manhã meu advogado me mandou as acusações por e-mail e eu fiquei um bom tempo explicando a ele a minha defesa. Eles [a acusação] alegam que eu nunca deixei claro que queria escrever um livro sobre a família. É a palavra de um contra o outro.

Eu disse a eles que queria escrever sobre a vida de uma família afegã. Que poderiam me contar ou não o que quisessem. E uma coisa muito importante é o fato de que eu não falo a língua deles. Tudo que está no livro foi traduzido para mim por membros da própria família que falam inglês, palavra por palavra. Então tudo está escrito como eles apresentaram. Não é como se eu tivesse relatado conversas secretas.

Espero que eles não entrem com o processo, porque isso vai me tomar muito tempo.

Folha Online - Você acha que o tom lírico de "101 Dias em Bagdá" pode ter influenciado na precisão do seu relato?

Seierstad
- Sim. É tudo baseado em fatos, mas não é um relato jornalístico tradicional no qual você se baseia apenas em fatos. Sempre me perguntam como posso descrever o que as pessoas pensavam. Bem, tudo é baseado no que ouvi. Pequenos detalhes não são tão precisos. Sempre precisamos fazer escolhas quando escrevemos. Acho que o que eu perdi em precisão, ganhei em conseguir que as pessoas se conectem com os personagens do livro. Espero que os leitores possam ter empatia com eles.

Folha Online - Há uma nova tendência atualmente, em parte devido ao antagonismo entre muçulmanos e ocidentais não-muçulmanos, de as mulheres usarem burqas e véus mesmo quando isso não é imposto a elas...

Seierstad
- É verdade, e eu posso dizer que é muito fácil se acostumar com a burqa. Ninguém vê você, e naquela região não ser visto é uma coisa muito importante. Elas precisam de proteção. E se você usou a burqa durante toda a sua vida, sente-se "nua" sem ela. Em poucas semanas, quando eu tirava a burqa ficava pensando que as pessoas iam poder ver minhas formas, coisas assim. As mulheres se acostumaram com ela, e se sentem mais seguras.

Mas isso não é o mesmo que dizer que você usa porque quer. Muitas pessoas me disseram que usam porque seus pais ou maridos exigem a burqa. Eu perguntei se elas andariam sem a vestimenta se os maridos assim exigissem, e elas disseram: "claro". Não era uma coisa muito importante, aparentemente.

Essa era uma postura "moderna" de Sultan Khan ( personagem principal de "O Livreiro de Cabul"), ele exigia que suas mulheres não usassem a burqa. Ele queria parecer moderno e avançado.

Folha Online - Com relação ao Brasil, como é a cobertura da mídia norueguesa sobre o assunto? Vocês recebem muitas notícias do país?

Seierstad
- Na verdade, sim. Principalmente agora, com as eleições e o "fenômeno" Lula [Luiz Inácio Lula da Silva] desde a última eleição. Falaram muito sobre isso. Discutiram o fato de ele não ter comparecido a debates no primeiro turno e apresentaram seus oponentes.

Lula é muito popular em toda a Europa. Acho que isso é por causa do passado de direita da América Latina. Quando um trabalhista de esquerda chega ao poder, pensamos: "finalmente, agora eles vão dar o troco". Mas há muitas pessoas da esquerda na Noruega que estão decepcionadas, ela acham que ele não foi "esquerdista" o suficiente. Mas eu não sei muito a respeito, não tenho conhecimento para apresentar uma opinião sobre isso.

O Brasil é representado como um país amigável, feliz. Ou é isso, ou então falam sobre o grande abismo entre ricos e pobres.

Folha Online - Você está planejando escrever um novo livro? Sobre o que gostaria de escrever?

Seierstad
- Estou ansiosa para voltar a trabalhar. Tirei um tempo livre depois de "101 Dias em Bagdá", mas agora estou pesquisando vários assuntos e ainda não me decidi sobre o que quero escrever agora.

Não sei se vou cobrir outro conflito. É claro, gostaria de voltar ao Oriente Médio. Sempre quis aprender árabe, mas às vezes acho que não conseguirei nunca. Talvez eu escreva um livro sobre integração social na Noruega. Talvez eu fique por lá [na Noruega], esquie um pouco e depois escreva sobre o país. Ainda não me decidi.


"101 Dias em Bagdá"
Autor: Asne Seierstad (ed. Record, R$ 40,90, 384págs.)

Fórum de Letras de Ouro Preto
Quando: de hoje à domingo (5), de R$ 10 a R$ 50
Informações: www.forumdasletras.ufop.br/2006


Especial
  • Leia o que já foi publicado sobre Asne Seierstad
  • Leia o que já foi publicado sobre o Afeganistão
  • Leia o que já foi publicado sobre a Guerra do Iraque
  •  

    Publicidade

    Publicidade

    Publicidade


    Voltar ao topo da página