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17/12/2002 - 02h50

A Bíblia em 12 passos

FREI BETTO
especial para a Folha de S.Paulo

Fotos Reprodução
As Bíblias hebraica, católica e protestante diferem quanto à inclusão dos livros sagrados. A hebraica -que exclui os livros escritos em grego e os suplementos gregos dos livros de Ester e Daniel- divide-se em Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), Profetas Anteriores (Josué, Juízes, Samuel 1 e 2 e Reis 1 e 2), Profetas Posteriores (Isaías, Jeremias, Ezequiel e os 12: Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias), os Escritos (Salmos, Jó, Provérbios, Rute, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Lamentações e Ester) e os Cinco Rolos (Daniel, Esdras, Neemias e Crônicas 1 e 2). Ao todo, 24 livros.

A Bíblia cristã se divide em Antigo Testamento , que inclui os escritos anteriores a Jesus Cristo, e Novo Testamento , que reúne uma coleção de livros que exaltam Jesus como o enviado de Deus. Na versão católica estão incluídos, no Antigo Testamento, todas as obras da Bíblia hebraica e os livros de Tobias, Judite, Eclesiástico, Baruc e Macabeus 1 e 2. A versão protestante do Antigo Testamento coincide com a hebraica. O Novo Testamento é comum a católicos e protestantes e inclui os quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), os Atos dos Apóstolos e as cartas de Paulo (Romanos, Coríntios 1 e 2 , Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, Tessalonicenses 1 e 2 , Timóteo 1 e 2, Tito e Filemon). Inclui também a Carta aos Hebreus, as cartas de Tiago, Pedro 1 e 2, João 1, 2 e 3, Judas e o Apocalipse.

Há edições da Bíblia ótimas em português. As mais acessíveis , traduzidas ao português falado no Brasil, são a edição pastoral da editora Paulus (destinada à comunidade católica) e "A Bíblia na Linguagem de Hoje", da Sociedade Bíblica do Brasil (destinada à comunidade evangélica ou protestante), de Stefan Andres (Melhoramentos, 258 págs., R$ 44,60). Para a comunidade judaica, há, em texto bilíngue (português e hebraico), a "Torá, a Lei de Moisés", editada pela Casa de Cultura de Israel. As Edições Loyola traduziram do francês a "TEB-Tradução Ecumênica da Bíblia" (2.496 págs., R$ 52), contendo notas instrutivas. Para quem gosta de estudar os textos bíblicos, recomenda-se a "Bíblia de Jerusalém", da Paulus Editora (2.206 págs., R$ 47).

É bom saber que os livros da Bíblia não fo-ram escritos por quem os assina como autores. Durante mais de dez séculos, as comunidades hebraicas e, mais tarde, as cristãs, recolheram tradições orais e escritas que serviram de fonte para, por exemplo, o profeta Jeremias compor o seu livro ou o evangelista João nos falar de Jesus. Mais do que escritores, os autores bíblicos atuaram como editores ou compiladores.

Assim como ninguém deixa de tomar um remédio porque na bula há um erro de concordância, também judeus e cristãos não se importam se encontram nos textos bíblicos um equívoco histórico. A seus olhos, eles são, antes de tudo, textos religiosos. Não buscam ali noções de ciência ou história e sabem que os autores bíblicos não pretenderam alcançar precisão metodológica e científica. Entrelaçaram referências religiosas, históricas e científicas segundo os conhecimentos da época. Mas que importa a qualidade da fiação ou dos condutos eletrônicos, do poste ou do abajur, para quem busca luz para enxergar melhor?

Traduzida em quase todos os idiomas e tida como o livro mais vendido no mundo, a Bíblia utiliza uma linguagem muito popular , o que também explica sua perenidade e a sua universalidade. Nela não há textos acadêmicos ou ensaios teológicos. De ponta a ponta, são cosmogonias antigas e lendas populares, narrativas históricas e orientações religiosas, memórias de grandes homens (patriarcas, Moisés, Davi, Salomão etc.), oráculos, pronunciamentos dos profetas, cânticos e axiomas, enfim, parábolas ou causos, como se diz em Minas Gerais, que podem ser lidos e interpretados de diferentes óticas. Na Bíblia, Deus não fala por conceitos abstratos, mas por noções plásticas, que podem ser visualizadas enquanto lidas. Daí a leitura oficial (ortodoxa), feita por autoridades judaicas e cristãs, de modo a assegurar que a assembléia de fiéis tenha um certo consenso em torno do significado da palavra de Deus. É o que se chama leitura canônica da Bíblia.

Os livros considerados fora do cânone ou da regra são chamados apócrifos , sem autenticidade. Na opinião das autoridades religiosas, são obras que não foram divinamente inspiradas, embora possam ter valor espiritual e literário. Os Evangelhos de Tomé, de Tiago, de Nicodemus e de Maria são exemplos de apócrifos.

A Bíblia contém textos dignos de figurar, por sua beleza literária, entre os clássicos da literatura universal , como o Cântico dos Cânticos, o Livro de Jó, o Eclesiastes, os Salmos e, no caso da versão cristã, o Apocalipse.

Dois riscos devem ser apontados na leitura da Bíblia: o fundamentalismo , que consiste em ignorar o caráter teológico das narrativas e tomá-las ao pé da letra, como acreditar que Adão e Eva foram literalmente criados por Deus, negando a evolução das espécies e não se dando conta de que Adão, em hebraico, significa terra (do hebraico "adamah", solo), e Eva, vida (da raiz hebraica "hayah", viver); e o concordismo , a pretensão de adequar os textos bíblicos aos conhecimentos científicos atuais, como interpretar os sete dias da Criação como uma forma de afirmar que a palavra de Deus prenunciou a evolução do Universo, do Big Bang aos dias de hoje.

A Bíblia não é apenas para ser lida. É sobretudo para ser orada . Ela contém tradições e ensinamentos religiosos reverenciados como sagrados. Para os fiéis, esses textos, oriundos de culturas tão diferentes, possuem caráter normativo, e eles -os fiéis- devem viver de acordo com o que Deus diz por meio deles. Por isso a boa leitura bíblica pode ser representada pelos três ângulos do triângulo: o texto (a palavra de Deus), o contexto (conhecer em que situação o texto foi redigido, a quem se destinava, com que objetivo) e o pretexto (a motivação para viver de acordo com a fé).

De preferência, a Bíblia deve ser lida em comunidade, comparando-se os fatos da vida aos fatos ali relatados, estabelecendo-se, assim, um diálogo com Deus. Como um projetor de cinema, ela não é uma obra na qual devemos fixar os olhos. O importante é projetá-la sobre a tela da vida, de modo que se possa ver a realidade com os olhos de Deus. Todo ensinamento bíblico está resumido num único mandamento ou exigência: amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmo.

Para entender melhor a Bíblia recomendo as obras de frei Carlos Mesters, frei Gilberto Gorgulho e Ana Flora Anderson (encontradas nas livrarias Vozes, Paulinas e Loyola) e do pastor Milton Schwantes. Há também as publicações populares do Cebi (Centro de Estudos Bíblicos). São outras boas referências o "Comentário Bíblico", de Dianne Bergant e Robert J. Karris (Loyola, 3 vols., 1.128 págs., R$ 95,30), o "Guia Literário da Bíblia", de Robert Alter e Frank Kermode (Unesp, 726 págs., R$ 65), "O Mundo da Bíblia", de David e Pat Alexander (Paulinas, esgotado) e o recém-lançado "Dicionário da Bíblia", organizado por Bruce M. Metzger e Michael D. Coogan (Jorge Zahar Editor, 400 págs., R$ 59).

Leia mais:
- A Bíblia é o jornal de Deus
- Leia verbetes do "Dicionário da Bíblia"

     

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