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17/12/2002 - 02h54

"É um paradoxo, mas nós, professores, somos feitos para não existir"

ALCINO LEITE NETO
enviado especial a Caen (França)

Michel Onfray é ao mesmo tempo uma estrela e um pensador marginal da cultura francesa. No meio filosófico do país, fazem de conta que ele não existe. "Não sou reconhecido pelos meus pares. Mas isso não importa, sou um indivíduo solitário."

Na imprensa, entretanto, é citado com frequência. As editoras também estão sempre de portas abertas para o filósofo. E a admiração dos leitores é uma constante para ele, sobretudo depois do lançamento de "Antimanual de Filosofia", em 2001, que vendeu mais de 100 mil exemplares. Não é o principal livro de Onfray, que já publicou 21 obras. No Brasil, teve cinco livros traduzidos, entre eles "A Escultura de Si" (212 págs., R$ 21,50) e "A Política do Rebelde" (291 págs., R$ 35), ambos pela Rocco. Na entrevista a seguir, Onfray conta por que decidiu abandonar o ensino público e criar a Universidade Popular.

Folha - Por que o sr. se demitiu da escola pública?
Michel Onfray -
Porque eu estava cheio da política educacional nacional, das inspeções, dos modelos de ensino. Decidi que iria parar. Como posso viver de meus direitos autorais e tinha vontade de continuar a ensinar, mas livremente, resolvi me demitir e criar a Universidade Popular.

Folha - As universidades populares na França começaram no século 19. Na época, havia esse valor, o povo. A quem se dirige o seu projeto?
Onfray -
No século 19, o objetivo era atingir o maior número de pessoas, que não precisariam fazer exames para poder vir ao encontro do saber e não pagavam nada para ter acesso ao conhecimento. Foi um pouco nesse espírito que eu criei o meu projeto. Quanto ao povo, acho que seria preciso defini-lo hoje como aquele que não exerce o poder, mas sobre o qual o poder é exercido. São pessoas privadas do saber de uma maneira geral.

Folha - Com o projeto da Universidade Popular, o sr. não tem receio de ser chamado de populista?
Onfray -
Não, pois popular é o contrário de populista. Ter preocupação com o povo nos dispensa de praticar a demagogia. Hoje, o povo —as pessoas modestas— fica em geral esquecido, e é a extrema direita que acaba se ocupando dele. Eu acho que a esquerda precisaria reencontrar o sentido do grande número. A chegada do [líder de extrema direita] Jean-Marie Le Pen ao segundo turno das eleições presidenciais na França é como o caso Dreyfus [processo judicial que marcou a França do séc. 19 por seu anti-semitismo]. É preciso deixar de ficar em seu canto, ralhando contra as pessoas que votaram em Le Pen e reprovando-as pela má escolha. Se temos vontade de esclarecer as pessoas, temos de ir à luta. Eu me sinto mais útil fazendo esse trabalho na Universidade Popular do que num liceu.

Folha - As escolas foram associadas à domesticação do indivíduo. Essa idéia ainda é válida?
Onfray -
Mas claro. Penso que as escolas não funcionam senão com isso e para isso. Elas não fabricam senão indivíduos dóceis, obedientes, formatados, que pensam o que os outros mandam eles pensarem, da forma como mandam. Elas ensinam
o que é necessário para reproduzir o sistema social. A Universidade Popular é uma alternativa a isso.

Folha - Hoje, qual seria a função do professor?
Onfray -
O professor é aquele que conduz, que aponta o norte, o sul, e depois diz ao aluno: 'Vire-se você, faça o seu próprio caminho'. Nietzsche dizia que um bom mestre é aquele que ensina os alunos a se desligarem dele. Então é preciso ensinar as pessoas a se desligarem de seus mestres, a serem mestres de si mesmas. É um estranho paradoxo, mas nós, professores, somos feitos para não existir. O que interessa é que as pessoas tenham uma relação direta com a filosofia, na qual eu serei apenas um mediador. Eu sou feito para desaparecer.

Folha - O sr. acha que a escola deveria mudar?
Onfray -
A escola deveria ser um lugar onde as pessoas tivessem vontade de estar, de ir e vir, um espaço mais ligado à vida da cidade, com cinema, cafés, bibliotecas, lugares de conferência. A escola se abriria para o mundo do ponto de vista arquitetural, mas também colocaria o saber mais em consonância com as necessidades da época, trazendo valores integrais e proposições que permitissem, por exemplo, discutir o que é o monoteísmo. Será necessário aprender sobre Carlos Magno? Será que não se deveria aprender outra coisa, de outra forma? Penso que há outros conteúdos, outros métodos, que poderiam ser adotados, bem como um novo modelo de frequência, de modo a permitir dizer ao aluno: 'Construa você mesmo o seu aprendizado'.

Folha - O que é o saber, hoje, depois que se aprende a ler, escrever e contar?
Onfray -
É preciso aprender a pensar e a reunir a isso todos os saberes que permitem conhecer. Eu não estou certo que o trabalho de memória sobre um certo número de fatos seja útil para pensar. Então que se trabalhe a retórica, a argumentação, a lógica, a construção de um discurso e de uma proposição. São coisas que se pode aprender, mas que não se aprende. A gramática acabou nas escolas. Imagino que se possa reunir o clássico e o moderno, ensinando também o que é ecologia, informática, biotecnologia etc.

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