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17/12/2002 - 02h55

Grátis e para todos

ALCINO LEITE NETO
enviado especial a Caen (França)

O filósofo francês Michel Onfray já havia completado 20 anos de ensino na escola pública quando resolveu dar um basta "à burocracia, ao enfado e à burrice da instituição". Pediu as contas e, assegurado pelos direitos autorais de seus livros, inclusive o best-seller "Antimanual de Filosofia", decidiu fundar uma escola aberta, livre e gratuita, que chamou de Universidade Popular. "Eu tinha vontade de continuar ensinando, mas livremente, sem constrangimentos", conta Onfray, 43.

Alcino Leite Neto/Folha Imagem
O filósofo Michel Onfray no Museu de Belas Artes de Caen (França)

A Universidade Popular começou suas aulas em outubro, em Caen, cidade de 113 mil habitantes no norte da França, onde vive o filósofo. Os cursos são dados no anfiteatro de 230 lugares do Museu de Belas Artes, cedido pela prefeitura. A primeira aula de Onfray teve mais de 600 ouvintes. Foi preciso instalar telão e cadeiras no hall do museu para quem não pôde entrar.

Todos podem frequentar a Universidade Popular, que não exige inscrição nem faz restrição aos seus alunos —seja de conhecimento, seja de idade. Também não controla o aprendizado, não realiza exames nem fornece diplomas. O projeto tem objetivo claro: democratizar o conhecimento. Para Onfray, o propósito é ajudar a formar indivíduos livres. "Um dos direitos do homem é o direito ao conhecimento, mas penso que nada se fez verdadeiramente para alargá-lo. Ele não é muito praticado."

Cada curso tem uma aula por semana, de duas horas. Na primeira hora, o professor, sentado numa mesa no centro do palco do auditório, faz sua exposição, utilizando um microfone. Na hora seguinte, ele responde às questões dos alunos. O modelo de aula mescla a forma clássica de exposição com o diálogo aberto.

O curso de Onfray, às terças-feiras, chama-se "História da Filosofia Hedonista", tema de sua especialidade. A professora Séverine Auffret ministra o seminário "Por uma História das Idéias Feministas". Um ateliê de filosofia para crianças também foi criado, sob a coordenação de Gilles Geneviève. Há outros cursos, mas nenhum dos professores ganha para dar as aulas.

O filósofo quer ampliar as opções de conteúdos para além da filosofia, mas isso não é tarefa fácil. "É preciso encontrar gente que esteja pronta a dizer: 'Eu dou duas horas do meu tempo toda semana, mesmo que isso não me traga nenhuma remuneração'."

Na França, o projeto de Onfray não é novidade, mas estava em desuso havia muito tempo. No fim do século 19, intelectuais progressistas e socialistas criaram universidades populares no país, com o intuito de levar o conhecimento à classe operária. Os filósofos Henri Bergson e Alain deram cursos em universidades populares, bem como Elie Faure, um dos maiores historiadores franceses de arte.

As universidades populares do século 19 foram criadas logo após o caso Dreyfus, processo judicial que marcou o país, em que um militar de origem judaica foi condenado injustamente por traição à França em favor da Alemanha. O caso dividiu a opinião pública na época, redespertando em muita gente o rancor anti-semita, o nacionalismo extremado e o sentimento belicista.

Para Onfray, a chegada do líder de extrema direita Jean-Marie Le Pen ao segundo turno das eleições presidenciais francesas foi também um dos motivos que o levaram a se interessar pela criação de uma universidade popular. Le Pen ultrapassou, nas eleições de maio deste ano, o candidato socialista Lionel Jospin e disputou a segunda fase em junho com o candidato de centro-direita Jacques Chirac. A intelligentsia francesa sofreu um choque com a ascensão do extremista e passou a se perguntar o que atraía tanta gente a um candidato que defende idéias retrógradas e racistas —Le Pen chegou a ter quase 18% dos votos.

A Folha foi a Caen assistir a uma das aulas do filósofo, no final de novembro. Um pouco antes do início da palestra, às 18h, o auditório já estava lotado. Cerca de 80 pessoas tiveram de acompanhar o curso no hall, por telão. Havia gente de todas as idades, de adolescentes a idosos. Vários trouxeram livros da bibliografia indicada para o seminário. Faziam anotações durante a exposição de Onfray.

Ele falou sobre o filósofo grego Demócrito. Os nomes dos pensadores citados e suas obras eram projetados numa tela no auditório. A linguagem de Onfray era sempre clara e interessante, mas jamais concessiva nem simplificada. Mais do que expor um tópico da filosofia, ele apresentava a sua própria filosofia, materialista e hedonista, em tudo oposta às abstrações do idealismo. "Que este seminário possa contribuir à difusão de uma filosofia que ri", explicou aos alunos.

"A Universidade Popular é uma ótima iniciativa, não elitista, que deveria ser adotada em outras regiões da França e mesmo em outros países", diz o estudante de cinema Xavier Gaonach, 25, que acompanha as aulas de Onfray desde o início. "Aprendi muita coisa que não conhecia, que não é ensinada na escola. O simples fato de assistir à conferência já é enriquecedor, mesmo que eu não estude em casa."

A oportunidade de refletir, desenvolver o pensamento e conhecer filosofia são as principais vantagens do curso ressaltadas pelos alunos. Para a funcionária pública aposentada Marie-Jo Bernard, 55, a Universidade Popular está lhe dando uma chance que ela não teve antes. "Quando jovem, vivia no campo, não havia universidade nas proximidades e não pude estudar filosofia. Agora que estou aposentada, posso fazer isso. O pensamento me interessa." No final da aula, às 20h, Onfray é assediado pelos alunos, que querem lhe cumprimentar pessoalmente ou pedir explicações. Ele responde a tudo com interesse e paciência. Um adolescente diverge da sua visão a respeito da filosofia de Platão. Os dois discutem longamente na entrada do auditório.

"A Universidade Popular visa a ajudar na formação cultural como parte da construção individual, e não como mais um signo de reconhecimento social. Ela é realmente feita para gente que quer investir no estudo pelo prazer", afirma o filósofo. O curso de Onfray, assim como os demais, dura até fins de maio, seguindo o calendário normal das escolas.

Leia mais:
- "É um paradoxo, mas nós, professores, somos feitos para não existir"
- Manual às avessas

     

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