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28/01/2003 - 02h48

Leia prefácio do livro "Quem Somos?"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo prefácio do livro "Quem Somos? - História da Diversidade Humana" (Editora da Unesp, 2002, 386 págs., R$ 45), citado na seção "Leituras Cruzadas". O texto foi escrito por Francesco Cavalli-Sforza, filho do co-autor do livro, Luca Cavalli-Sforza.

Prefácio: Um homem é um homem

Em sango, uma língua da África Central, "Zo we Zo" significa "Um homem é um homem". Uma pessoa é uma pessoa: todo ser humano é igualmente digno. Uma verdade tão antiga quanto nós mesmos, ofuscada nestes tempos pela devastação de países pela violência racial, pelos genocídios, pelas guerras econômicas e religiosas, pelas contendas seculares.

Que podemos fazer, individual e coletivamente, para que tudo isso termine, para que não se repita? A julgar pelas notícias diárias da imprensa e televisão, a resposta é "nada ou muito pouco". Não sou capaz de responder à questão, e desconheço quem o seja. Se alguém chegou a vislumbrar uma solução, que dê um passo à frente o mais rapidamente possível. O mundo está cheio de boas intenções e resultados deploráveis. Mas, se não somos capazes de tornar mais amena a vida na sociedade de que fazemos parte, o que estamos fazendo aqui?

Quem nos antecedeu poderia guardar a resposta? Acredito que não, porque o que nos rodeia hoje é em grande parte o legado dos nossos ancestrais. "Os mortos enterram os vivos!", declara uma personagem de Ésquilo. E no entanto devemos aos nossos pais e avós o próprio fato de estar vivos. O que pode fazer uma nova geração para influenciar o curso da história? É uma pergunta que deve ser respondida.

Luca Cavalli-Sforza, meu pai, é um cientista. Ele dedicou quarenta anos de trabalho à evolução das raças humanas, utilizando informações disponíveis sobre genética humana e estudando outras ciências: arqueologia, lingüística, antropologia, história, demografia e estatística. Este livro descreve suas perguntas, as pesquisas realizadas para tentar respondê-las, as observações, os dados acumulados, as interpretações que surgiram na tentativa de esclarecer a natureza do nosso passado. Não é a biografia científica de um pesquisador; se Luca é uma figura central nessa esfera, isso se deve à originalidade da sua pesquisa, à sua maneira de agrupar contribuições de áreas diferentes e harmonizá-las.

É curioso, e relevante, que um livro sobre continuidades e mudanças tenha sido escrito por pai e filho. De início concebido como um texto-entrevista, de alguma forma evoluiu para um relato na primeira pessoa. O narrador é Luca. Ele conta seus esforços de cientista indagando e procurando soluções, de alguém que soube cooperar com pessoas superficialmente tão diferentes dele os pigmeus da África ou superficialmente tão similares como os cientistas de outras disciplinas a maioria das humanidades. Juntamos nossos esforços para tornar o estilo agradável e compreensível. Os leitores não precisam ser especialistas, os termos técnicos utilizados foram devidamente explicados. A matéria está organizada em seções, para facilitar a leitura e as consultas.

Eu mesmo não sou cientista, sou um diretor de filmes. Meu trabalho é contar histórias. Durante a preparação deste livro deparei com a história, com as rotas percorridas por milhares ou dezenas de milhares de pessoas que, ao longo de cem mil anos, colonizaram cada canto do planeta. Somos quase seis bilhões atualmente, um número que parece inclinado a duplicar-se a cada geração, ou pouco mais que isso. Para mim, o livro foi uma grande oportunidade de conhecer nosso passado e refletir sobre ele. Desejo ao leitor a mesma experiência.

O Capítulo 1 discute os pigmeus e as tribos ainda existentes de caçadores-coletores, mantenedoras de um estilo de vida que foi característico da nossa espécie até dez mil anos atrás (ou seja, durante aproximadamente 99% da nossa existência). Os Capítulos 2 e 3 descrevem o que sabemos sobre o desenvolvimento do homem até cem mil anos atrás e do primeiro homem moderno até o presente. O Capítulo 4 explora a teoria da evolução e as forças que agruparam ou separaram seres vivos ao longo do tempo. Os Capítulos 5, 6 e 7 relatam a história dos povos que colonizaram o planeta nos últimos cem mil anos, a lenta e inexorável expansão da agricultura nos últimos dez mil anos e a extraordinária diversificação das línguas que acompanhou a dispersão da espécie humana. O Capítulo 8 trata da nossa herança cultural e genética. O Capítulo 9 aborda as questões mais cruciais sobre raça e racismo. E, finalmente, o Capítulo 10 analisa o futuro genético da humanidade, a engenharia genética e as tentativas atuais de descrever, na sua totalidade, a herança de cada ser humano (o Projeto Genoma Humano). Mesmo sendo preferível, os capítulos não precisam ser lidos em seqüência. O Capítulo 4, que descreve a teoria da evolução, é recomendado àqueles que desejarem compreender a lógica subjacente a este livro. Os Capítulos 1, 5, 6, 8 e 9, em particular, mostram novas pesquisas de Luca Cavalli-Sforza, apresentadas pela primeira vez num texto escrito para o público em geral.

Há algo em comum entre meu trabalho e o do meu pai. É a questão do coletivo: tanto para a realização de uma pesquisa científica como a de um filme são necessárias dezenas e dezenas de colaboradores. As capacidades de comunicação e cooperação, de idealização e realização, de visualização dos problemas mais pertinentes e detecção das soluções mais felizes são essenciais ao êxito de ambas as empreitadas. Quase todas as pesquisas aqui relatadas envolveram muitas pessoas, que unificaram suas atividades por um objetivo comum.

Lembro que, por volta do mês de janeiro de 1968, meu pai convidou-me a participar, junto aos seus colegas, de uma viagem de landrover por areias escaldantes para chegar até alguns grupos de pigmeus na floresta equatorial. Apesar do fascínio de uma jornada pelo deserto, e a possibilidade de encontrar pessoas que são o testemunho vivo da nossa história mais antiga, preferi ficar em Milão. Sentia um ar de mudança. Daí a algumas semanas ocupamos o liceu e começou para mim, e para muitos outros, um período de inovação e exploração que criou uma nova visão do mundo, diferente da dos nossos pais e mestres ou de quem nos havia precedido. Durante o verão daquele ano percorri a Europa de carona. Um ano depois, as estradas eram outras, no México e nos Estados Unidos; o ambiente humano era o "movement" nascido das revoltas estudantis e dos filhos das flores. "Mudar a vida antes que ela nos mude" é o que se dizia então.

Cito essas experiências pessoais porque cada geração tem essa chance: viver de maneira original, abrir alternativas históricas. Para muitos da minha geração, tanto na Europa como nos Estados Unidos, isso significou explorar as relações interpessoais, as relações entre sexos, sondar o próprio interior e as fronteiras da percepção, inventar um estilo de vida próprio e avaliar-se nas ações políticas. Agir com liberdade, basear-se continuamente nos resultados da própria experiência, e não em religiões ou ideologias. É preciso ter coragem; é preciso correr os riscos que toda mudança comporta. O sucesso não é garantido, especialmente quando novos caminhos são percorridos.

Pensando em tudo o que foi movimentado então, talvez venha à tona a sensação de que "a montanha deu à luz um ratinho". Algumas sementes vingaram e deram frutos; aprendemos também que as mudanças culturais importantes exigem gerações para firmar-se e serem reconhecidas como tais.

É um prazer descobrir que os sítios arqueológicos onde se encontram os mais antigos testemunhos da atividade humana já indicam uma capacidade de trabalho em colaboração entre nossos ancestrais mais remotos. Ao que parece, ela tem sempre sido uma das mais úteis ao nosso desenvolvimento.

Acredito que fazer história é melhor que escrever sobre ela. Mas o passado sempre me fascinou. É extraordinário que hoje em dia, graças ao progresso nas técnicas de pesquisa, podemos passar a saber mais sobre a Antigüidade que o sujeito mais informado do momento. As milhares de gerações que nos antecederam deixaram o resultado de suas ações e suas composições biológicas, e a elas devemos nossa existência. Mas a cada dia que se passa na Terra tudo depende de nós, os vivos, e do exemplo que damos aos recém-chegados da nossa espécie.

A história está escrita nos nossos genes e nos nossos atos. Não podemos fazer muito pelos primeiros, mas podemos fazer virtualmente tudo pelas ações, se formos pessoas livres. Nunca como agora o fim do segundo milênio da era cristã, o século XIV da hégira islâmica e o século XXVI da iluminação de Buda tivemos à disposição tantos meios para fazer da Terra um paraíso ou um deserto, criar uma vida agradável ou infernal.

Precisamos lembrar que nossas semelhanças predominam sobre nossas diferenças. Cor da pele e formato do corpo, língua e cultura são tudo o que diferencia as milhares de pessoas espalhadas pelo mundo. Essa variedade, testemunho da capacidade de enfrentar mudança, de adaptar-nos a ambientes diversos e criar novos estilos de vida, é a melhor garantia do futuro da espécie humana. Entretanto, o conhecimento adquirido a nosso respeito e descrito neste livro claramente mostra que toda essa diversidade, assim como a superfície mutável do mar ou do céu, é mínima se comparada ao infinito legado que compartilhamos e que nos une como seres humanos.

Francesco Cavalli-Sforza

Leia mais:
- Raças, genes e homens
- Leia introdução de "História da Humanidade"

     

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