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28/01/2003 - 02h50

Leituras Cruzadas: Raças, genes e homens

MARCELO LEITE
Editor de Ciência da Folha de S.Paulo

France Presse
Quase todas as questões sociais e políticas se resumem à da diferença —de classe, de renda, de raça, de poder, de prestígio, de gênero. Como o cérebro humano é um instrumento poderoso de discernimento e classificação, as pessoas tendem a orientar-se para a vida em sociedade agrupando-se umas às outras como pertencentes a certas categorias. Em geral, essa atividade classificadora se baseia em critérios socioculturais, como o jeito de falar, mas é da índole humana tentar apoiá-la também naquele dos cinco sentidos mais diretamente vinculado à diferenciação, a visão. Características físicas como formato dos olhos, cor da pele ou estatura ganham ares de indicadores mais ou menos seguros de que a pessoa à sua frente pertence a um grupo identificável, ao qual se pode atribuir com alguma probabilidade certo status social. É sempre prudente, afinal, saber com quem se está falando. tendem a orientar-se para a vida em sociedade agrupando-se umas às outras como pertencentes a certas categorias. Em geral, essa atividade classificadora se baseia em critérios socioculturais, como o jeito de falar, mas é da índole humana tentar apoiá-la também naquele dos cinco sentidos mais diretamente vinculado à diferenciação, a visão. Características físicas como formato dos olhos, cor da pele ou estatura ganham ares de indicadores mais ou menos seguros de que a pessoa à sua frente pertence a um grupo identificável, ao qual se pode atribuir com alguma probabilidade certo status social. É sempre prudente, afinal, saber com quem se está falando.

Esse parece ser o fundamento do conceito de raça. Apesar de parecer tão natural e espontâneo, ele tem sido uma fonte histórica inesgotável de problemas e tragédias, a começar pelo extermínio de mais de 6 milhões de pessoas da "raça" judia, na Segunda Guerra, e pela escravização de quantidade ainda maior de pessoas da "raça" negra, entre os séculos 16 e 19. Mal definido como é, e quase com certeza indefinível de fato, ainda assim goza de enorme apelo para o comum das pessoas, sobretudo se vier embalado em argumentos tidos e havidos como objetivos, como os que até bem pouco tempo eram procurados no campo da genética. Se tudo está nos genes, como diz a crença tão mais resistente quanto pouco científica, aí também deveria encontrar-se a raiz das raças. A boa notícia é que os genes não têm nada disso, como explicam de modo acessível dois livros lançados há pouco no Brasil: "História da Humanidade", de Steve Olson (Campus, 312 págs., R$ 59), e "Quem Somos? História da Diversidade Humana", de Luca Cavalli-Sforza e Francesco Cavalli-Sforza (Editora Unesp, 386 págs., R$ 45).

O lançamento quase simultâneo de obras com projeto tão similar pode até ser um sintoma, mais que uma coincidência: o tempo e a ciência talvez já estejam maduros o bastante para lançar um ataque final ao conceito de diferenças raciais. Os Cavalli-Sforza e Olson buscam fazê-lo entrelaçando duas narrativas sobre a espécie humana que compõem uma mesma história, seu surgimento como Homo sapiens na África, há possivelmente mais de 100 mil anos, e sua diáspora pelo mundo. Uma parte dessa saga é contada pelos registros fóssil (esqueletos) e arqueológico (artefatos). Outra, pelos genes que ainda hoje carregamos, nos quais também se encontram enterrados os vestígios de populações ancestrais: migrações, extermínios, padrões de miscigenação. A convergência crescente dessas duas linhas de pesquisa sobre o passado do homem é uma das grandes realizações da ciência na passagem do século 20 para o 21, e os volumes da Unesp e da Campus a apresentam de forma atraente.

France Presse
Participantes da conferência da ONU contra o racismo, realizada em Durban (África do Sul) em 2001

Para além da coincidência de projetos, os dois livros trazem conclusões semelhantes sobre a unidade da espécie, muito nova, na escala da evolução biológica, para originar "raças" ou subespécies, passo intermediário no caminho da especiação que deu e dá origem à biodiversidade da Terra. Sempre houve contatos próximos, no tempo e no espaço, entre populações humanas, mais ainda agora, com a tal da globalização.

"Para quase todas as características hereditárias estudadas observamos que as diferenças entre indivíduos são mais importantes que as diferenças entre grupos raciais. Muito raramente acontece o que estamos acostumados a ver quanto à cor da pele, ou seja, que todas as pessoas da raça A são decididamente escuras e todas as da raça B são claras. Enfim, o nível de constância não é suficiente para satisfazer a definição corrente de raça ", escrevem os Cavalli-Sforza (na realidade, escreve Francesco, o filho documentarista, a partir do depoimento de Luca , o pai geneticista). "O DNA de todos os habitantes da Terra é tão semelhante que não parece razoável usar a biologia para justificar o que são em essência diferenças sociais. As preferências, as personalidades e a capacidade dos indivíduos não são determinadas pela história biológica dos ancestrais, mas dependem de atributos individuais, das experiências e das opções de cada um. Quando a maioria se convencer desta verdade, a história genética se tornará muito menos importante. Ao olharmos para uma pessoa, não pensaremos se ela é preta, branca ou oriental, mas apenas que é uma pessoa", concorda Olson.

Apesar da congruência dos textos, a obra de Olson leva alguma vantagem sobre a dos italianos por ser mais recente (a edição original americana é de 2002, quando a italiana dos Cavalli-Sforza é de 1993). Por essa razão, apenas o norte-americano faz a narrativa de um episódio central na vida recente de Luca Cavalli-Sforza, que lhe deu notoriedade mundial, tão ampla quanto negativa (antes disso ele já era um geneticista respeitado, colaborador e amigo, por exemplo, de James Watson, um dos decifradores da estrutura tridimensional da molécula de DNA, em 1953). Trata-se do Projeto Diversidade do Genoma Humano, lançado por ele e outros geneticistas em 1991 com o propósito de coletar no mundo todo amostras biológicas do maior número possível de populações, sobretudo grupos indígenas ameaçados, como maneira de preservar suas informações genéticas para estudo.

A partir justamente de 1993, o projeto foi alvo de ataques cada vez mais ácidos de representantes e estudiosos dessas populações, que temiam o mau uso dos dados genéticos —por exemplo, patenteamento de genes raros com eventual interesse biotecnológico. Apelidado de Projeto Vampiro, o plano não alcançou nem uma fração do porte com que Luca Cavalli-Sforza o imaginava. O caso é reconstituído por Olson no capítulo "O Ônus do Conhecimento". No livro escrito por Cavalli-Sforza filho, o caso só é abordado no prefácio de Walter Neves, da USP, que faz uma defesa apaixonada do italiano, seu orientador na Universidade Stanford (Califórnia, EUA) nos 80. Para Neves, todos os seres humanos teriam uma dívida que nunca poderá ser saldada com Cavalli-Sforza pai, "homem de ciência sem equivalentes na história da antropogenética da segunda metade do século 20".

Revista "Fluir"
Habitantes do Havaí, onde há uma população muito diversificada
Ambos os textos, no entanto, têm uma considerável desvantagem: pouco ou nada dizem sobre a experiência histórica única de miscigenação de populações e "raças" humanas que é o Brasil. Em lugar dele, Olson usa o caso também ímpar do Havaí —onde polinésios, europeus, chineses e japoneses vêm constituindo uma das sociedades etnicamente mais diversificadas do planeta, desde que James Cook lá aportou em 1778— para sustentar a tese de seu último capítulo, "O Fim das Raças": mesmo a miscigenação genética mais radical não é garantia de dissolução do preconceito, pois esse é um fenômeno sociocultural e somente nesse plano pode resolver-se. "A etnia se torna independente da biologia e passa a ser uma classificação cultural, política ou histórica. As pessoas não são mais o que dizem ser por causa de alguma essência biológica misteriosa; elas escolheram o grupo a que desejam pertencer." O Brasil tem a longa e vergonhosa história de seus escravos contemplada em apenas três páginas, com a discutível conclusão:

"No Brasil, por exemplo, os escravos africanos tinham mais formas de conquistar a liberdade que em outros países, e os colonizadores portugueses eram notoriamente receptivos a contatos com outros povos. Em consequência, os casamentos inter-raciais foram numerosos e as características dos brasileiros de hoje são extremamente variadas. O racismo não está totalmente ausente do Brasil; apesar das afirmações de que todas as raças são tratadas da mesma forma, as pessoas de pele escura têm mais dificuldade para conseguir bons empregos, boas moradias e boas escolas. Entretanto, a cor da pele no Brasil varia de forma contínua, o que também acontece com as diferenças sociais."

Olson não cita as fontes de seu arrazoado histórico-sociológico, mas ouvem-se nele ecos das formulações benevolentes do pernambucano Gilberto Freyre e da ideologia da democracia racial, ainda que feita a ressalva sobre as dificuldades socioeconômicas dos mais escuros em nossa terra. Faltou a Olson conhecimento das pesquisas com ancestralidade genética que vêm sendo realizadas aqui por cientistas do grupo de Sérgio Danilo Pena, da UFMG —um colaborador local do projeto de diversidade de Cavalli-Sforza, assim como Walter Neves e Francisco Mauro Salzano. Desse grupo vieram e ainda vêm os trabalhos que dão lastro a afirmações como a de Olson na pág. 268 —embora ele não cite a fonte—, de que "em algumas populações da América do Sul, praticamente todos os cromossomos Y são da Europa e todo o DNA mitocondrial é de grupos locais". Como os Ys vêm só dos pais e as mitocôndrias, só das mães, essa é uma forma de dizer que homens brancos procriaram com mulheres negras e índias, o que não necessariamente equivale a "casamentos inter-raciais numerosos".

Felizmente para o leitor brasileiro, está na praça também a coletânea "Homo Brasilis — Aspectos Genéticos, Linguísticos, Históricos e Socioantropológicos da Formação do Povo Brasileiro" (Funpec, 194 págs., R$ 30), organizada pelo próprio Pena. Provavelmente é um livro difícil de encontrar em livrarias, por ter sido publicado por editora mais especializada, da Fundação de Pesquisas Científicas de Ribeirão Preto. Nele se encontra o texto "Retrato Molecular do Brasil", em que Pena apresenta a distribuição das linhagens patrilineares (cromossomo Y) e matrilineares (DNA mitocondrial) de europeus, negros e indígenas no Brasil, com base na qual se pode dizer com alguma segurança que é tão provável um brasileiro ter uma negra ou índia na sua ascendência quanto é improvável encontrar um tataravô masculino de origem africana. (São dez trabalhos ao todo, mas é bom alertar que a linguagem e o conteúdo são mais técnicos e impenetráveis que as obras de divulgação de Olson e dos Cavalli-Sforza.) Mais recentemente (17 de dezembro passado), Pena e seus colaboradores tiveram publicado na revista da Academia de Ciências dos EUA, a "PNAS", um estudo também de grande repercussão. Com base em outro grupo de marcadores genéticos (dez, em diversos cromossomos herdados tanto do pai quanto da mãe), ele sustenta a tese de que nem todo negro no Brasil é geneticamente um afrodescendente e que nem todo afro-brasileiro é necessariamente um negro. Em outras palavras, a pele que socialmente é classificada como negra revelou-se um indicador muito fraco de que a maior parte do DNA da pessoa provém de ancestrais africanos.

Igualmente preocupado com as diferenças entre os homens, mas no caso as diferenças que levaram os europeus a derrotar e dominar nativos americanos e africanos, é o livro "Armas, Germes e Aço" (Record, 476 págs., R$ 55), de Jared Diamond. Assim como Olson, Cavalli-Sforza e Pena, seu alvo é a explicação racista da diversidade —aqui, da superioridade tecnológica (armas e aço) e da constituição fisiológica (resistência a germes) que, para Diamond, explicam e sustentaram quatro séculos de colonialismo e genocídio. Para refutar a tese de que os brancos constituíam uma raça superior, mais apta ou mais inteligente, o evolucionista norte-americano vai buscar determinantes geográficas e ecológicas da conquista. Grosso modo, sua tese é que o pulo do gato teria sido a domesticação de plantas e animais, ou seja, o desenvolvimento da agropecuária.

Sem a agricultura, as populações teriam permanecido pequenas, sem meios de experimentar a diferenciação social que propicia especialização e desenvolvimento de técnicas (populações maiores também tendem a concentrar-se em cidades, ambiente propício para a co-evolução de virulência e resistência entre micróbios e homens). A pergunta imediata, ou de certo modo anterior (mas por que apenas certas populações viram disseminar-se a domesticação?) suscita uma das mais surpreendentes e polêmicas explicações do livro: a própria forma dos continentes favoreceria a migração e, com ela, a difusão tanto de tecnologias quanto de espécies domesticadas. Na Eurásia, que se estende no sentido leste-oeste, latitudes e climas são similares, exigindo menor adaptação dos migrantes humanos e de seus associados biológicos. Nas Américas e na África, ao contrário, a extensão em sentido longitudinal teria erguido sucessivas barreiras ecológicas à marcha natural de grupos por novos recursos naturais.

"A história seguiu cursos diferentes para povos diferentes por causa de diferenças entre os ambientes desses povos, e não por causa das diferenças biológicas entre os próprios povos", resume Diamond. De certo modo, ele substitui um determinismo (biológico) por outro (ecológico). Sai a loteria dos genes e entra a loteria geográfica —como se a história e a cultura não fossem algo feito e refeito pelos homens, mas apenas o que acontece com eles. Nem mesmo o abandono da visão racista garante que a explicação da diferença possa encontrar o rumo da liberdade.

Marcelo Leite, 45, é jornalista. É autor dos livros "Os Alimentos Transgênicos"
e "A Floresta Amazônica", da série Folha Explica (Publifolha). E desconfia que tem ascendentes índios e negros, além de portugueses e espanhóis.

Leia mais:
- Leia introdução de "História da Humanidade"
- Leia prefácio do livro "Quem Somos?"

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