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16/12/2003 - 03h22

Leituras Cruzadas: Religião para crianças

PAULO DANIEL FARAH
especial para a Folha de S.Paulo

Será que Deus existe? Foi Ele quem criou o céu e a terra? Onde e como nasceu Jesus Cristo? Quem foi Abraão? Sobre o que fala o Mahabharatha? Quais são os princípios do budismo? Essas e várias outras questões relacionadas ao cristianismo, ao judaísmo, ao hinduísmo, ao budismo e a outras religiões vêm sendo esclarecidas —ainda que geralmente de forma parcial— por uma série de livros infanto-juvenis que muitas vezes também ajudam os adultos a entender temas com frequência complexos.

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Os autores se propõem a oferecer explicações claras, em linguagem simplificada, sobre esse elemento essencial da experiência humana, que facilita a compreensão de questões existenciais, processos históricos, obras de arte, hábitos alimentares, códigos de vestimenta etc.

"Fiquei surpreso. Quando minha filha Marie completou 13 anos, dei-me conta de que ela não havia recebido uma educação religiosa... Marie cresceu, então, sem pertencer a uma religião, como muitas crianças de sua geração. Mas nós não imaginamos as consequências: as referências que lhe faltavam me surpreenderam. A Bíblia, a própria idéia de Deus, a significação do sagrado, por exemplo, nada disso lhe era familiar. As semelhanças e as diferenças mais fundamentais entre judeus, cristãos e muçulmanos não estavam claras em sua cabeça... A unidade das religiões e sua diversidade nunca lhe tinham sido explicadas por ninguém", explica o autor de "As Religiões Explicadas à Minha Filha" (Via Lettera Editora, 80 págs., R$ 18,50), o professor de filosofia Roger-Pol Droit. A obra, em forma de diálogo, traz perguntas como "Quantas religiões há?", "Sempre houve religiões?" e "Ainda podemos ver religiões que nascem?". As respostas apostam na simplicidade e nas analogias, mas evitam a simplificação excessiva.

Em outro livro semelhante, "Deus Explicado aos Meus Netos" (Via Lettera Editora, 80 págs., R$ 20), o jornalista Jacques Duquesne (mais conhecido pela obra "Jesus", com sua visão menos convencional e por vezes polêmica de Jesus Cristo) tenta explicar ao público infantil conceitos como mito, rito, criação e morte.

Quando seus netos lhe questionam sobre a existência de Deus e dizem que, "se alguém existe, esse alguém pode ser encontrado", o autor concorda com ele e diz que "a gente pode encontrar Deus. Não para lhe apertar a mão ou cumprimentá-lo, dizendo: 'Olá. Como vai? Tudo certo?'. Não desse jeito... Voltarei a isso mais tarde". O problema, nesse livro, no entanto, é justamente a repetição desta última frase, com pequenas variações ("mais tarde, a gente fala sobre isso", "isso fica para mais tarde" etc.), o que cria a impressão de debates infindáveis.

"As pessoas acham que as crianças são diferentes, consideram as crianças inferiores aos adultos. Acham que elas são estúpidas. Um bom livro infantil deve conter uma série de histórias, personagens e ilustrações. E as ilustrações não precisam ser exatamente iguais ao texto... E as personagens dos livros infantis não deveriam ser nem ruins nem boas. As histórias devem estar vinculadas ao contexto em que se vive, mas as crianças também gostam de histórias sobre terras longínquas", afirma a escritora e ilustradora indiana Samhita Arni, autora da recém-lançada versão para crianças do Mahabharatha.

Há várias opções de edições simplificadas dos principais livros ou histórias sagradas das religiões. O livro "Bíblia para Crianças" (Martins Fontes, 262 págs., R$ 32) desvela a origem da palavra Bíblia (de "biblos", termo grego para papiro e nome da cidade responsável por sua difusão, que atualmente se encontra no Líbano), suas divisões e os livros que a compõem, com explicitações como "o livro do Gênesis, isto é, origens (do mundo)".

Essa obra, que às vezes utiliza termos ou estruturas frasais desnecessariamente complicadas, privilegia o Evangelho segundo Lucas e apresenta uma seleção mais concisa dos Evangelhos segundo Mateus, Marcos e João. Ao final, traz um pequeno léxico bíblico e um índice das passagens bíblicas.

O "Histórias da Bíblia para Jovens" (Saraiva, 208 págs., R$ 46), de Regina Drummond, é voltada para jovens, como o título diz, não para crianças de pouca idade. A autora faz uma adaptação contemporânea, mas fácil de ler para um cristão sem muito contato com a religião. "Já no fim do quinto dia, Deus ria e Sua risada soava como o badalar de sinos, admirando o resultado do Seu trabalho... Ria de pura alegria, porque misturara tanta cor que acabara se empolgando e misturando os animais também: colocou a baleia e o golfinho no oceano, junto com peixes de todos os tamanhos. E a ema, não era uma ave? Só que ela saiu muito grande, não conseguia voar; então Ele ordenou que ficasse na terra mesmo; para compensar, fez o beija-flor e ordenou-lhe que voasse para frente e para trás e até que ficasse parado no ar..."

Em suas páginas, traz quadros explicativos sobre o Jardim do Éden, a Árvore da Vida e os querubins (entre outros temas), imagens de pinturas famosas, gravuras, ilustrações e fotos. A intenção, diz o editor, é ressaltar "a importância dos temas abordados pela Bíblia e sua influência no cotidiano e na história da humanidade".

Na obra "O Menino Jesus Nasceu..." (Impala, 32 págs., R$ 22), cuja autoria é do Departamento de Catequese do Patriarcado de Lisboa, há belas ilustrações e textos breves e simples. Editorialmente, no entanto, apresenta problemas: erros de português, além de informações históricas erradas (diz que Belém fica atualmente em Israel, quando está sob controle palestino, e indica num mapa político atual apenas Israel, sem menção a Cisjordânia ou Gaza).

O judaico "Heróis da Bíblia: Os Patriarcas" (Sêfer, 40 págs., R$ 20) é um relato natural e solto, como se o autor, Ilan Brenman, estivesse contando uma história para uma roda de crianças naquele momento. A coletânea de 20 histórias da tradição judaica tem o cuidado de indicar a transliteração dos nomes hebraicos entre parênteses ao lado do nome aportuguesado.

As histórias contadas para crianças da coletânea "Contos Budistas" (Martins Fontes, 80 págs., R$ 42,50), extraídas de culturas de vários países asiáticos (China, Vietnã, Tibete, Japão, Mianmar), ilustram aspectos da tradição budista. A obra também fala sobre o surgimento do budismo e sobre os países onde se concentra.

O humor aparece em pequenos contos recontados por Sherab Chödzin e Alexandra Kohn, como "Trabalho Inútil" (colhido da tradição oral) e "Aonde Você Vai?", cuja conclusão surpreende. "O Homem que Não Queria Morrer" aborda duas preocupações fortes no budismo: a natureza caprichosa do desejo e o medo da morte.

O que se observa nessas obras, além de descreverem características próprias da tradição a que estão vinculadas, é uma tentativa de permitir que as crianças tenham noção do papel desempenhado pela religião na história da humanidade.

"Se não falarmos delas [das religiões] com nossos filhos, eles correm o risco de passar totalmente ao largo desses tesouros da humanidade", diz Roger-Pol Droit, que defende a importância de garantir liberdade de opção religiosa aos filhos, mas considera a religião parte integrante da experiência humana.

Paulo Daniel Farah, 31, é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

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