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27/01/2004 - 03h12

Quem tem medo do conhecimento?

FERNANDO EICHENBERG
free-lance para a Folha de S.Paulo, de Paris

Há mais de 30 anos, o educador e psicólogo clínico francês Serge Boimare, 58, promove um trabalho psicopedagógico com crianças e adolescentes que recusam a aprendizagem escolar. Sua experiência com uma classe do Centro Psicoterapêutico de Vitry-sur-Seine, no subúrbio de Paris, para alunos classificados como "crianças com perturbações de comportamento e conduta", acabou provocando novas descobertas.

Divulgação
O psicólogo Serge Boimare
Depois de 15 dias na escola, ele se viu sozinho em sala de aula, pois as crianças preferiam permanecer no pátio ou nos corredores, entretidas com atividades não pedagógicas. Por desespero, ele começou a ler histórias dos irmãos Grimm para os poucos alunos remanescentes em classe.

A medida parecia surtir efeito. Sua audiência era cada vez maior. Mas, toda vez que fechava o livro para passar para os problemas de gramática ou matemática, os alunos se dispersavam.

"Na hora, pensei que as histórias eram apenas algo que os motivava e os interessava. Mas, depois, compreendi que havia algo além. Nas histórias, havia representações de coisas que os inquietavam. Pede-se aos alunos violentos e sem coerência que se distanciem de suas raízes pulsionais para continuar a aprender. Isso não é possível. É preciso reencontrar o caminho com essas raízes, se quisermos que eles aprendam", defende.

A partir dessa experiência, ele desenvolveu uma metodologia de aprendizagem para crianças com dificuldades baseada em contos infantis, histórias da mitologia grega ou grandes mitos da humanidade. Em Paris, na sua sala no Centro Médico-Psicopedagógico Claude Bernard, do qual é diretor pedagógico, Serge Boimare recebeu o Sinapse para explicar suas idéias e falar de seu livro "L'Enfant et la Peur d'Apprendre" (A criança e o medo de aprender, sem previsão de lançamento no Brasil), para o qual prepara uma edição revista e ampliada, que sairá pela Éditions Dunod em março.

Sinapse - Por que crianças têm medo de aprender?
Serge Boimare -
Aprender é colocar em jogo qualidades e capacidades intelectuais, o que envolve também as capacidades psíquicas para sustentar os questionamentos provocados pela aprendizagem. Certas crianças não têm essa capacidade, elas vivem de uma forma muito difícil a confrontação com o fato de não saber, de faltar alguma coisa, de duvidar. Em vez de enfrentar esse desafio, elas preferem se retirar ou inventar estratégias para não aprender, e é assim que se desenvolvem muitos problemas de comportamento.

Sinapse - Para vencer isso, o sr. propõe o que chama de "mediação cultural", seja no nível literário, no científico ou no artístico.
Boimare -
No plano pedagógico, penso que não poderemos nunca ajudar essas crianças se trabalharmos partindo de suas lacunas, como a falta de linguagem, de referências, de métodos. Se quisermos sair dessa paródia de aprendizagem, é preciso conseguir que lhes seja proposta uma figuração de seus medos que nascem com a situação de aprendizagem. Deve-se propor imagens —a construção de um cenário, de suas inquietudes despertadas enquanto elas estão aprendendo. É a pedagogia ativa, que se apóia num tema para apresentar aquilo que devemos passar às crianças. Isso é banal na pedagogia. O que eu proponho, de novo, é que ela traga embutida os medos que são despertados, em vez de se apoiar numa mediação cultural geral.

Sinapse - O sr. propõe a via literária, baseada em textos que podem ir de contos de fada à "Odisséia", de Homero.
Boimare -
Nos contos, nos romances iniciáticos, na mitologia, na poesia, em períodos da história, encontrei figurações dessas inquietudes, que não são infinitas. Há as inquietudes ligadas à identidade, que podem ser deflagradas por um questionamento sobre as origens, os conflitos de gerações, o lugar no grupo, a sexualidade, a morte. Essas questões parasitam o funcionamento intelectual de certas crianças.

Sinapse - Como Júlio Verne pode ajudar, por exemplo, essas crianças que têm medo de aprender?
Boimare -
Compreendi que, em cada capítulo, Júlio Verne coloca seus heróis diante de inquietudes bastante primárias. Os heróis são confinados, sentem fome, falta de ar, sede, estão no escuro, se afogam, são perseguidos por tubarões. Ele salva seus heróis dessas situações dramáticas obrigando-os a se servirem de funcionamentos intelectuais, de um saber anterior, da ciência, do conhecimento. Seus protagonistas vão precisar de tudo isso para compreender um fenômeno natural que os superava, e os vemos, graças a essa reflexão perdida na situação dramática, alcançar um controle da situação. No início, pensava em ler para os alunos as situações dramáticas e pular as explicações científicas. Mas as crianças me perguntavam por que eu pulava certas páginas. Elas tinham necessidade de saber como ocorria o relâmpago, como funcionava um submarino, todas as explicações científicas.

Sinapse - E em relação às mitologias gregas?
Boimare -
Veja na matemática, por exemplo. Quando se trabalha com crianças com problemas de comportamento, vemos que a divisão é algo extremamente difícil, pois pode despertar fortes inquietudes pessoais. Algumas crianças, por exemplo, não aceitam a divisão pois acham que serão desapossadas de algo. Então trabalho com uma história que se apóia numa representação da divisão. Há o mito dos gêmeos rivais, Castor e Pólux, filhos ilegítimos de Zeus, que termina numa partilha desigual. São imagens. A mitologia é muito rica para todas as grandes questões e problemas de identidade.

Sinapse - Tudo isso não é fugir da realidade?
Boimare -
Quanto mais vivem fracassos na escola e mais empobrecidas são as mensagens que lhes são fornecidas, mais as crianças são desfavorecidas. Elas são obrigadas a escrever coisas um tanto anódinas, a realizar tarefas utilitárias. Penso que se deve fazer exatamente o contrário, buscar elementos da cultura que as façam descolar da realidade, mas que, ao mesmo tempo, sejam representações de suas inquietudes.

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