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27/01/2004 - 03h14

Quando o problema não é o aluno

PAULO DE CAMARGO
free-lance para a Folha de S.Paulo

André Novotny, 13, é apaixonado por história e ciências. Coleciona pedras, navega com desenvoltura pela internet, faz pesquisas sobre o corpo humano e quer se preparar para estudar medicina. Essa é uma forma de contar a história de André. Há outra. O menino percebeu, cedo, que a escola pode ser um lugar penoso. Teve dificuldades para seguir o ritmo de seus colegas, acumulou insucessos em português e matemática. Sempre tentou aprender, mas começou a se achar incapaz. Passou a andar com outros estudantes que também não iam bem nos estudos, alguns já marcados pela reprovação.

Fotos Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Bernardo Schlesinger, que melhorou seu desempenho estimulado por uma tutora
Entre uma e outra versão, está a escola e sua incapacidade de lidar com as várias facetas e com os vários ritmos da aprendizagem. André, que hoje é um bom aluno da Escola Prima, na zona sul de São Paulo, teve a sorte de encontrar educadores que se dispuseram a atendê-lo individualmente, a levantar sua auto-estima e a mostrar que ele poderia aprender por outros caminhos.

"As dificuldades de aprendizagem raramente têm origens apenas cognitivas, mas suas causas articulam-se dentro da escola e da família", diz a psicopedagoga Maria Luísa Carvalho de Almeida Sampaio. Autora da dissertação de mestrado "Em Busca de um Sentido para o Aprendizado Escolar", apresentada na Faculdade de Educação da USP, ela diz que são comuns casos como o do adolescente tímido colocado em um colégio altamente competitivo; ou o do menino louco por esportes que, pelos pais, deveria ser formado como um lorde inglês.

"Em geral, a escola quer atender um aluno ideal, que não existe, e tem grandes dificuldades para lidar tanto com o que está abaixo como com o que está acima da média", diz a psicóloga Maria Cristina Mantovanini, doutora em educação pela USP e consultora de escolas particulares. No livro "Professores e Alunos-Problema: Um Círculo Vicioso" (Editora Casa do Psicólogo, 2001), ela traçou um diagnóstico das dificuldades de aprendizagem e confrontou a percepção que professores do ensino fundamental tinham de seus alunos. "Quanto mais o professor se sente despreparado para lidar com o problema, mais transfere as dificuldades para o aluno", conclui.

Os problemas de aprendizagem possuem muitas causas. Podem estar relacionados ao contexto emocional vivido pelos alunos em casa ou na escola, às questões de metodologia de ensino ou a transtornos de aprendizagem. Até pouco tempo atrás, muitos obstáculos de origem física, como deficiências na audição ou na visão, nem sequer eram diagnosticados.

Augusto Ribeiro de Carvalho Júnior, 14, passou por vários especialistas e chegou a perder um ano de escola, até que teve diagnosticada uma dislexia. Hoje, recebe apoio no CAD (Centro de Aprendizagem e Desenvolvimento) e leva uma vida escolar normal. "Gosto muito de nadar, andar de bicicleta, ler revistas e estudar", conta Augusto, que concluiu a sétima série em 2003.

Até o final do ano, de acordo com as estimativas do MEC (Ministério da Educação), mais de 160 mil alunos dos ensinos fundamental e médio de escolas particulares brasileiras deverão ser reprovados por não atingirem níveis mínimos de aproveitamento escolar. Mas as dificuldades causadas pelos chamados transtornos de aprendizagem respondem pela menor parte dos problemas de fracasso escolar.

Para a psicóloga Nádia Bossa, autora de "Fracasso Escolar: Um Olhar Psicopedagógico" (Artmed), o insucesso do estudante deve ser entendido como o fracasso da escola em lidar com a diversidade. "Em uma sala de aula, existem 30 ou 40 singularidades, das quais o professor espera uma resposta única", diz. "Se há muitas maneiras de aprender, também devem existir muitas formas de ensinar", avalia.

De acordo com Nádia, em mais da metade dos casos que atende em seu consultório, a origem dos problemas está relacionada diretamente à forma de ensino ou é agravada pelas questões didáticas. "A primeira tentativa da escola para tratar das dificuldades de aprendizagem é fazer um plano de estudos, como se a questão fosse apenas estudar mais, mas isso raramente resolve a questão", diz.

Augusto Ribeiro de Carvalho Júnior, que adora ler, chegou a perder um ano de escola
Do ponto de vista das metodologias de ensino, um dos casos clássicos é o aprendizado de matemática. Para a pesquisadora espanhola Inés María Gómez Chacón, doutora em didática pela Universidade Complutense de Madri, "grande parte das dificuldades do aprendizado da matemática reside nas emoções, nas atitudes e nas crenças envolvidas nesse processo".

Inés fez uma pesquisa, na Espanha, com alunos de ensino fundamental (publicada no livro "Matemática Emocional", que saiu no Brasil pela Artmed). Como resultado, descobriu que os problemas de aprendizagem nessa matéria estão, muito freqüentemente, ligados ao medo, à ansiedade, ao tédio e também a uma auto-imagem desfavorável. "Para a sociedade, aprender matemática está ligado a ser inteligente ou não", diz.

Assim, o aprendizado torna-se problemático e cada vez mais influenciado por fatores comportamentais. "Normalmente, a recuperação desses alunos consiste em reapresentar a mesma visão, a mesma estratégia, por inúmeras vezes, mas isso não funciona, pois a escola não consegue enxergar a origem dos problemas", afirma Inés María.

Em São Paulo, escolas começam a buscar alternativas que possam catalisar o desenvolvimento dos alunos a partir de outros estímulos, como os emocionais. O Colégio I.L. Peretz trouxe de Israel o Perah, um programa de voluntariado no qual universitários ex-alunos são capacitados para se tornarem tutores de crianças que ainda estudam na escola.

Foi assim que o aluno Bernardo Schlesinger, 9, filho único, ganhou uma "irmã" mais velha no ano passado, a estudante de psicologia da PUC-SP Gabriela Gorenstein, 20. Acompanhando o desenvolvimento de Bernardo, a escola sugeriu aos pais sua inclusão no programa, principalmente por sua timidez. Na avaliação dos professores, se pudesse contar com a companhia semanal de um adulto que não fosse parente ou professor, o aluno poderia ganhar maturidade, aumentar sua sociabilização e aprimorar seu desempenho.

Depois de um ano, Leonardo Schlesinger, 43, pai de Bernardo, aprova a experiência. "O vínculo afetivo fez muito bem para meu filho, que está diferente, mais solto", considera. "Em sala de aula, ele está mais integrado e participativo", concorda a orientadora educacional Célia Regina Kovackick, do I.L. Peretz.

O suporte emocional é uma das estratégias principais do trabalho da Escola Novo Ângulo/Novo Esquema, que há 30 anos se especializou no atendimento a alunos com os mais diversos graus de dificuldade de aprendizagem. "O aluno precisa voltar a acreditar em si mesmo", diz a psicopedagoga Rita de Cássia Rizzo, diretora da escola. "O mais importante é olhar para a possibilidade, e não para a dificuldade", completa. A escola, no entanto, ressalva que não faz um trabalho clínico —apenas atém-se aos aspectos educacionais. "Para isso, no entanto, não basta boa vontade, é preciso ter método", diz.

Muitos alunos que chegam ali não apresentam dificuldades cognitivas, mas não se adaptam às regras escolares. "Para não repetirem o ano, os inadaptados acabam sendo convidados a procurar outras escolas", afirma Rita. Marcelo Bastos, 16, por exemplo, passou por quatro instituições antes de chegar à Novo Ângulo/Novo Esquema. Hoje, está no segundo ano do ensino médio. "Não gosto da obrigação de freqüentar a escola", diz.

Se as escolas têm dificuldades para lidar com alunos que fogem ao padrão, o mesmo acontece com as famílias. "O fracasso escolar leva a uma espécie de massacre do aluno, realizado tanto pela escola como pela família", afirma a diretora do CAD, Raquel Caruso. "Quando os pais procuram ajuda estão desesperados, já tratam o filho como alguém com limitações cognitivas", diz.

Muitas vezes, a origem começa com a má escolha da escola. Para Maria Cecília Cortez Souza, da Faculdade de Educação da USP, os pais erram ao escolher a escola pela lógica do mercado, como se educação fosse um investimento para o qual se espera um retorno de capital. "Em vez de olhar para os filhos e suas características, os pais olham para a escola e para o quanto ela pode servir às possibilidades de sucesso profissional."

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