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17/02/2004 - 03h02

Leituras Cruzadas: Livros pra cachorro

MANUEL DA COSTA PINTO
colunista da Folha de S.Paulo

E se a literatura fosse um animal que arrastamos ao nosso lado, noite e dia, um animal doméstico e exigente, que jamais nos deixasse em paz, que fosse preciso amar, alimentar, levar para passear? Que amamos e detestamos. Que nos dá a tristeza de morrer antes de nós, já que a vida de um livro dura tão pouco nos dias de hoje." Esse breve parágrafo corresponde ao último capítulo (intitulado "O Livro-Cão") do livro "Da Dificuldade de Ser Cão", de Roger Grenier, e é uma espécie de síntese entre duas estranhas paixões humanas: a literatura e os cachorros.

Reuters
Cães esperam para ser liberados para participar de caça em Morpeth, na Inglaterra

Sim, são duas paixões estranhas, algo doentias, além de complementares. Na literatura, construímos mundos imaginários para dar forma e inteligibilidade à desordem e às contradições da experiência, fazendo com que o fictício pareça mais autêntico, verdadeiro e íntegro do que a própria vida. Em nosso convívio com os cães, agimos na direção contrária: transferimos para o mundo um pouco da insensatez humana, instalamos no animal a angústia, o tédio, a paixão desenfreada, a dependência patológica.

Ocorre, porém, que tanto a literatura como os cães são indissociáveis da nossa idéia de cultura. O surgimento desse "lobo geneticamente modificado" que chamamos de cachorro ocorreu há mais de 10 mil anos, quando tribos de caçadores perceberam que seria útil domesticar e utilizar esses predadores na perseguição a outros mamíferos. Mesmo depois que a agricultura sedentarizou o homem, porém, o convívio entre o Homo sapiens e o Canis familiaris permaneceu, transformando o cão no eterno agregado da matilha humana.

Já a literatura precede aquilo que denominamos história: se esta é datada a partir da invenção da escrita, os mitos, as lendas e os heróis da Pré-História foram sendo perpetuados por transmissão oral até que alguém resolvesse transpô-los para o papel (ou, no caso, para o pergaminho).

"Da Dificuldade de Ser Cão", de Roger Grenier (Companhia das Letras, 144 págs., R$ 27,50)
Ou seja, estamos demasiado acostumados a conviver com fábulas e totós para perceber que há aí algo de intrinsecamente antinatural. Por isso, não causa estranheza que, após enfrentar os inimigos e a fúria dos deuses, Ulisses só tenha vertido lágrimas de emoção ao reencontrar seu velho cão Argos, único a reconhecer o rei de Ítaca quando este completa a "Odisséia".

O episódio (evocado por Grenier no início de seu livro) é talvez o primeiro de uma série de encontros literários em que o cachorro desempenha o papel ora de metáfora da condição humana, ora de imagem idealizada. De um lado, o cão pestilento, saltimbanco, enlameado, esfomeado; de outro, o amigo fiel, com olhar humanizado e focinho nostálgico, encarnação peluda da sinceridade e da coragem, mantendo com os sentimentos do dono um sistema de vasos comunicantes, uma comunicação sem palavras.

Coincidência ou não, nos últimos anos surgiram no mercado editorial brasileiro vários títulos pertencentes ao que poderíamos chamar de "cinoliteratura". A leva de publicações inclui um clássico como "Flush - Memórias de um Cão", da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941), o romance "Timbuktu", do norte-americano Paul Auster, um escritor do Leste Europeu (o húngaro Tibor Déry) e um autor brasileiro (o jornalista Antonio Costella, que escreveu uma saga em quatro volumes intitulada "Patas na Europa"). Além, é claro, do mencionado livro de Roger Grenier, deliciosa sucessão de crônicas de um octogenário que conviveu com boa parte da intelectualidade européia do pós-guerra e que recapitula a presença canina na vida e na obra de escritores como André Gide, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Céline e Colette.

São livros que, obviamente, não se confundem com os manuais de criação e adestramento de cães. No caso de obras literárias, mesmo as certezas científicas ou as observações da etologia (disciplina que estuda o comportamento animal) guardam um sentido metafórico e procuram estabelecer uma contigüidade com o humano ("os cães têm o sorriso na cauda", escreveu o poeta Victor Hugo) ou, em alguns casos, com seres humanos bastante excepcionais ("é sabido que os cães, como Napoleão, têm a capacidade de adormecer em qualquer lugar e em qualquer hora", afirma Tibor Déry em "Niki - A História de um Cão").

"Flush - Memórias de um Cão", de Virginia Woolf (L&PM, 152 págs., R$ 26)
Os hábitos e aptidões físicas dos cachorros servem como imagem especular do homem. Nas mãos de bons escritores, o que parece uma idiossincrasia ou um atavismo serve de pretexto para a ironia e para a contemplação dos limitados recursos sensórios do "Homo familiaris". Assim, em "Flush", Virginia Woolf narra a história do casal de poetas ingleses Elizabeth Barrett e Robert Browning do ponto de vista de um cocker spaniel dourado e, sem antropomorfizá-lo completamente, mostra que a insuficiência lingüística dos cães é o avesso da nossa precariedade olfativa:

"Ao passo que duas ou três mil palavras são insuficientes para descrever o que se vê (...), não há mais do que duas palavras e meia para descrever o que se cheira. O nariz humano é praticamente não-existente. Os maiores poetas do mundo não sentiram o cheiro de nada além de rosas de um lado e de esterco de outro. As infinitas gradações que existem entre as duas substâncias não foram registradas. Ainda assim, era no mundo dos cheiros que Flush vivia a maior parte do tempo. O amor era um dos cheiros principais; formas e cores eram cheiros; a música e a arquitetura, a lei, a política e a ciência eram cheiros. Para ele, a religião em si era um cheiro".

Para o poeta Henri Michaux, o olfato canino é um "fantástico catálogo, constantemente atualizado", um "cardápio de fedores" cujas nuanças fariam corar os gourmets e os enólogos, limitados por seu parco vocabulário. E um simples passeio da cadelinha Niki, de Tibor Déry, abre as páginas de uma "enciclopédia de bolso" em que "o conjunto das árvores de uma avenida substituía o conteúdo de um ano inteiro de um jornal diário".

"Niki - A História de um Cão", de Tibor Déry (Veredas, 128 págs., R$ 25)
Niki, aliás, sempre se surpreende com a insensibilidade e o comportamento irracional de seus donos, que a proíbem de participar das refeições para, ao final, servirem-lhe "os bocados mais deliciosos, os ossos", e que a privam "da liberdade de rolar no mais refrescante dos perfumes, ou seja, nos despojos de animais putrefatos". O romance de Déry, porém, mostra como esses relatos trazem sempre um subtexto alegórico: as histórias de cães são sempre um pouco mais do que histórias de cães, da mesma maneira que os cães são algo mais do que animais, e os homens são algo menos do que humanos.

Embora não tenha o caráter explícito de uma fábula contra o totalitarismo (como ocorre, por exemplo, com "A Revolução dos Bichos", de George Orwell), o livro de Tibor Déry guarda um sentido político inequívoco. Ambientado na Hungria do final dos anos 40, o romance conta como a pequena fox terrier Niki se introduz no cotidiano do casal Ancsa, que perdera o filho na Segunda Guerra. Ao longo do livro, o que parece ser apenas um retrato sensível da graciosidade de Niki e de seu papel na economia afetiva da casa serve de ponto de partida para denunciar a atmosfera asfixiante de um país que mergulha na ditadura comunista, com seus expurgos e prisões sem julgamento.

Uma simples consideração sobre a "pedagogia" dos Ancsa pode dar lugar a um discurso exaltado: "O abuso de autoridade, essa gangrena de todos os reis, caudilhos, ditadores, de todos os diretores, gerentes, secretários, de todos os pastores, da gente que cuida de vacas ou de porcos, de todo chefe de família e de todo educador, de todo irmão mais velho, de todos os velhos e de todos os jovens a quem estão subordinadas outras criaturas entusiasmadas, essa fetidez, essa doença, essa infecção do ser humano que nenhum outro animal sanguinário conhece, essa maldição, essa blasfêmia, guerra e peste era desconhecida no lar dos Ancsa. Eles não mutilavam desnecessariamente a liberdade de Niki. O círculo afável da disciplina, para onde a atraíam delicadamente, no interesse da coletividade, era transparente e transponível, aberto em todos os seus pontos para o mundo amplo das necessidades reconhecíveis".

No geral, porém, Tibor Déry se equilibra habilmente entre a psicologia animal e "insights" sobre a liberdade humana. Suas intuições sobre a noção de tempo dos cães são agudas, e quem quer que tenha convivido com eles reconhecerá em Niki o olhar nostálgico e de autocomiseração com que os cachorros respondem à ausência do dono: "Do mesmo modo como recebia com uma felicidade exuberante cada retorno de seus donos, fosse após dez minutos, ou passados alguns dias, cada adeus a abatia com igual intensidade: considerava-o como sendo para todo o sempre. (...) Como podia explicar a esse sentimento concentrado de morte que ela apenas ia à feira e em uma hora estaria de volta?".

Mas, ao mesmo tempo, essa tragicomédia cotidiana dos cães pode ser premonitória e mostra que a catástrofe está sempre na iminência de se concretizar: após várias perseguições políticas, o dono de Niki é detido, ela passa a morar apenas com a senhora Ancsa, e sua vida se transforma numa interminável espera, com os ouvidos sempre atentos aos passos que se aproximam da porta.

Da mesma maneira, nos diz Déry, a condição do animal doméstico (cujo destino é determinado pelos donos, cujos passeios e momentos de prazer são regidos por regras arbitrárias) é simétrica à alienação do homem, que não pode se apoderar de seu destino: "Em sua dependência absoluta dos humanos, [Niki] se assemelhava àqueles presos que desconhecem a causa da prisão e por quanto tempo serão mantidos ali".

Tanto "Flush" como "Niki" são livros em que a perspectiva canina se presta a um olhar distanciado em relação à sociedade de seu tempo. No caso de Déry, trata-se de uma crítica ao Estado policialesco. Em Virginia Woolf, o romance serve de sátira à alta sociedade vitoriana —sendo que uma das passagens inesquecíveis é o episódio (real) do seqüestro de Flush, que obrigou sua sofisticada dona a se deslocar até um bairro mal-afamado para pagar o resgate, sob pena de receber a ossada do lulu numa caixa (prática comum entre os meliantes da época).

As personagens-título de Woolf e Déry, todavia, são cães que respondem como cães às demandas dos humanos. Ou seja, não são antropomorfizados. Os narradores descrevem suas sensações e lhes atribuem significados, mas eles continuam confinados em seu léxico de latidos. Afinal, um cachorro falante seria pouco verossímil.

"Patas na Europa", de Antonio F. Costella (Mantiqueira, 128 págs., R$ 19 - primeiro volume)
Mas pode ser divertido, como prova a epopéia "Patas na Europa", de Antonio Costella. Ao todo, são quatro livros, baseados numa experiência real do autor, que, convidado a lecionar em uma universidade portuguesa, foi aconselhado por um veterinário a levar seu cão Chiquinho, que não resistiria à longa separação.

A viagem é narrada pelo simpático vira-lata, um cão familiarizado com a biblioteca do dono e, portanto, dotado de incomuns conhecimentos sobre a cultura européia. Apesar da premissa fantasiosa, o autor adota um artifício narrativo que separa claramente o fictício do memorialístico. Assim, a viagem que ele, sua mulher e Chiquinho fazem por Portugal e, depois, por países como Espanha, França, Itália e Grécia segue um roteiro de fato percorrido pela família Costella. Enquanto seus donos visitam museus e sítios arqueológicos, porém, Chiquinho conhece Teobaldo, fantasma de um cavaleiro que pertencera à Ordem do Templo (organização militar e religiosa que teve participação ativa nas Cruzadas).

Pela mão do templário medieval, Chiquinho vai encontrando outros espectros históricos (como o imperador Alexandre, da Macedônia, e o poeta inglês Byron) e literários (como Ulisses, que lhe fala de seu reencontro com Argos e corrige alguns exageros cometidos por Homero ao narrar suas aventuras na "Odisséia"...). Chiquinho conversa com os fantasmas, mas nunca com seus donos, o que mantém o equilíbrio entre fato e ficção nesse "guia turístico canino" repleto de anedotas eruditas, referências cifradas e instrutivas divagações sobre a cultura e a história européias.

"Timbuktu", de Paul Auster (Companhia das Letras, 144 págs., R$ 27,50)
Outro vira-lata atropomorfizado e dotado de consciência crítica é Mr. Bones, o protagonista de "Timbuktu", de Paul Auster, romance que pode ser descrito como uma espécie de "road movie" canino: depois da morte de seu dono (Willy, um poeta "outsider", alcoólatra e visionário), Mr. Bones passa a perambular pelas ruas dos EUA em busca de um novo lar, convencendo-se pouco a pouco de que só o encontrará em Timbuktu, o reino dos mortos, o "oásis de espíritos" de que lhe falava Willy.

Romance sobre a inadaptação social, a solidão e o abandono metafísico, "Timbuktu" faz de Mr. Bones uma personagem complexa. Sem deixar de ser cão (Mr. Bones não fala e não tem pensamentos em primeira pessoa), ele é uma espécie de pura consciência da exclusão, uma consciência formulada pelas palavras do narrador, mas que só poderia ser percebida a partir de uma vivência intensa de sua condição canina.

"Cão como metáfora", "cão como emblema dos oprimidos", Mr. Bones é, ao mesmo tempo, "real pra cachorro" —e toda a riqueza do livro está nessa oscilação. Assim, logo depois de mostrar como a palavra "dog" (cão) encerra um "trocadilho celestial" com a palavra "God" (Deus) e que "a mais ínfima das criaturas continha em seu nome o poder do ser mais elevado, o todo-poderoso artífice de todas as coisas", Auster se sai com esta máxima escatológica sobre seu totó beatnik:

"E apesar de tudo isso, Mr. Bones era um cachorro. Da ponta do rabo até a extremidade do focinho, era um puro exemplo do Canis familiaris, fosse qual fosse a presença divina que se havia abrigado dentro da sua pele, ele era antes e acima de tudo aquilo que parecia ser. Sr. Au-Au, Monsieur Uôf-Uôf, Sir Vira-Lata. Conforme dissera muito bem um gaiato em um bar de Chicago, quatro ou cinco verões antes: 'Quer saber qual é a filosofia de vida de um cachorro, meu camarada? Vou explicar qual é. Basta uma frase curta: se uma coisa não dá para comer nem para foder, mije em cima dela'".

Pode-se dizer sem exagero que o Mr. Bones de Auster é tão prenhe de significados quanto a Baleia de "Vidas Secas" (que, ao lado do Quincas Borba de Machado de Assis, é a mais célebre personagem canina da literatura brasileira). A diferença é que a cachorrinha de Graciliano Ramos enlouquece por causa da fome nordestina e, ao morrer, sacrificada por seu dono (o retirante Fabiano), espera acordar "num mundo cheio de preás"; já Mr. Bones, ao correr em direção à morte, sonha com um lugar em que "os cães seriam capazes de falar a língua dos homens e conversar com eles de igual para igual". No paradisíaco Timbuktu, enfim, a literatura canina poderia ser escrita pelos próprios cães.

Manuel da Costa Pinto, 37, é jornalista e escreve aos sábados na Ilustrada. Passeia todos os dias com a Lua e com a Mel —e morre de saudades da Calu, que está em Timbuktu.

Leia mais
  • Leia trecho do livro "Patas na Europa"
  • Leia capítulo de "Flush", de Virginia Woolf

         

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