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Análise
Diretor contradiz o Antigo Testamento em certos pontos
REINALDO JOSÉ LOPES COLABORAÇÃO PARA A FOLHAPara entender os adendos aparentemente malucos feitos à narrativa da Bíblia no filme "Noé", vale a pena ter em mente uma palavrinha hebraica: "midrash".
Esse termo é usado para designar narrativas criadas pelos antigos rabinos para explicar o texto bíblico e acrescentar mais detalhes a ele.
A tradição judaica acabou elaborando os "midrashim" porque as histórias da Bíblia, e em especial as do livro do Gênesis, costumam ser extremamente enxutas, deixando no ar dúvidas sobre a ambientação e a motivação dos personagens, por exemplo.
Em entrevistas, o diretor Darren Aronofsky, ele próprio judeu (embora não religioso), disse que tentou trabalhar na linha dessa tradição.
No filme, um caso interessante é o de Matusalém, avô de Noé (atenção para os spoilers). Segundo a Bíblia, ele morreu aos 969 anos --sim, os humanos dessa época teriam sido muito longevos--, no ano do dilúvio. A versão cinematográfica aproveitou essa coincidência para retratar Matusalém como uma espécie de mentor místico de Noé, que escolhe se sacrificar quando a Terra é inundada.
Outra ampliação dos temas bíblicos no filme é a faceta ambientalista e "vegana" da família de Noé --eles se recusam a comer carne.
De fato, quando Adão e Eva são criados na Bíblia, eles e os demais animais recebem do Criador a ordem de comer apenas plantas. Essa ordem só é explicitamente revogada por Deus depois do dilúvio.
Em outros pontos, Aronofsky optou por contradizer diretamente a narrativa bíblica. No Antigo Testamento, por exemplo, os três filhos de Noé embarcam na arca já adultos, cada um com sua esposa, o que não se dá no filme.
E os anjos caídos que ajudam o herói a construir seu barco não aparecem na Bíblia --o equivalente mais próximo são os "nephilim", gigantes que seriam filhos de anjos com mulheres mortais, mencionados de passagem.