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Nina Horta

Dia de ogro na cozinha

Queria ser a mulher que ela esperava, cheia de paixão pela comida, descrevendo como se tempera um coelho

Ontem foi lá no bufê uma repórter bonita me entrevistar. Tinha um nome devastador, ninguém pode não gostar de alguém que se chame Luara. Vi que estava preparada, tinha lido meu livro, tinha gostado, os olhos brilhavam de simpatia por aquela mulher que passara a vida lidando com a cozinha e, ao mesmo tempo, tinha um negócio e coisas paralelas.

O que ela queria saber? "Que história é essa que comida passou a ser a coisa mais importante do mundo? Por que o assunto é esse, por que as pessoas saem para jantar fora todo dia? E, por que, se não cozinham, assistem a todos os programas de TV, Ana Maria Braga, o "MasterChef", o Gordon Ramsay, o Jamie, o Troisgros, o Anquier e a Rita Lobo? E todos os outros mais?"

Eu queria ser a mulher que ela esperava, cheia de paixão pela comida, descrevendo como se tempera um coelho, como se faz um ragu muito macio, o milagre de transformar o cru no cozido, o ovo em clara batida. Eu queria a pureza da Palmirinha, a cultura do passado, ela também.

Mas, sem querer, foi saindo de dentro de mim um ogro pessimista. De minuto em minuto, eu matava o brilho da Luara. Intercalava uma frase falando bem da cozinha, e logo apareciam mais três questionando a possibilidade de cozinhar com graça hoje em dia.

Geralmente, colocamos os problemas dentro de nós. Cozinhar ficou difícil porque nós envelhecemos, porque nossa família aumentou, porque trabalhamos o dia inteiro, à noite, queremos sossego.

Hummmm, mas não estaríamos apontando para dentro quando o certo era apontar para fora, para o mundo, para as circunstâncias?

Mas vamos convir que acabou-se o que era doce. O trânsito, as distâncias, as filas, o computador exigente, todas as notícias do mundo (quando uma azia de um coreano pode mudar a nossa vida).

Você adoraria ser o mágico Jamie Oliver, mas sabe que não dá. Vamos assistir e talvez um dia, quem sabe? Cozinharemos com a leveza dele. (Conheci o Jamie Oliver se formando, virando cozinheiro no começo dos 90.) Olha o tanto que demorou! Hoje assistimos aos profissionais como no teatro. Assistimos aos cozinheiros. Somos nós, num mundo ideal. Podemos ir ao mercado e comprar o que o cozinheiro fez.

Luara, minha entrevistadora loura e azul, é mentira que só comemos fora e bem. Só pra quem pode. A padaria nos salva, um café e um sanduíche ou uma rabanada, um suco. O sanduíche e a saladinha do almoço e do jantar... Talvez, à noite, um macarrão rapidinho, um risoto, que já nos dão enorme prazer e orgulho, mas, definitivamente, a massa de cozinheiros domésticos está deixando a profissão e o hobby para os especialistas.

Doces para os doceiros, bolos para os boleiros. Que cada um se arranje do jeito que pode, do jeito que seu bolso alcança e, se o amor pela cozinha é muito, ainda vai dar certo. Há meios de elaborar a escala das prioridades. Só não vai dar tempo de ler "Culture in a Liquid Modern World" (cultura em um mundo moderno líquido), de Zygmunt Bauman. Prefira a padaria com seu eterno pãozinho quente com manteiga e pouca filosofia.

ninahorta@uol.com.br

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ninahorta.blogfolha.uol.com.br


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