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Nina Horta

Diário de um chef

'A criatividade é a habilidade de guardar momentos especiais e depois ser capaz de juntá-los com o agora'

Queria muito o livro do Noma, de René Redzepi. Desta vez as promessas eram tantas, um livro 3 em 1: diário, fotos e receitas. E foi do diário que mais gostei. É sincero, cândido, prende a atenção ao descrever a vida e os processos de criação da equipe de cozinheiros e, principalmente, o que vai pela cabeça de Redzepi.

O cozinheiro acorda, num belo dia, e não consegue ir trabalhar, de cansaço, de estresse. Assustado, parte para umas férias de um mês.

Mil tacos depois, as férias o fizeram repensar a vida. Não queria morrer, queria viver com alegria. A equipe tinha que estar motivada e aberta à experimentação. Sem a possibilidade de brincar, as ideias simplesmente somem: "Os melhores dias são aqueles em que você acorda como uma criança".

A primavera começa, o chef e a equipe secam a primeira ervinha que brota. Resolvem desenvolver um projeto de "cozinha desidratada". Desidratam tudo que aparece pela frente. Grande sucesso com o pó da raiz-forte que fica com gosto de salsinha e de repente sobe ao nariz como uma mostarda. As vieiras desidratadas, cortadas bem fininhas, são puro umami. De intuição em intuição, fazem um mingau de grãos, misturado com purê de agrião, umas nozes e molho negro de tinta de lula. Sucesso surpreendente e totalmente sem referências anteriores.

E continuam. Farinha de cogumelos, farinha de musgos e descobrem bem debaixo do olho do bacalhau a parte mais deliciosa do peixe. Chamam isso de cozinha "trash", mais ou menos comida do lixo, a mais difícil para o cliente aceitar. A porção nova do peixe, mais fatias finíssimas de ovas desidratadas, de fígado do peixe curado e fatiado no mandoline. As escamas fritas em manteiga clarificada e uma infusão de algas. A mistura não podia ser melhor, tudo "clicou" exatamente no lugar, como "clicam" morangos com creme e melão com presunto.

No meio do sucesso das experimentações e da preparação para o simpósio MAD, a mulher do nosso cozinheiro adoeceu. Ele foi para casa fazer o almoço. Pegou uma galinha grande e gorducha, com a pele cor de gema. Havia ganhado umas frutas cítricas de Kyoto, no Japão. Yuzu, bergamota, limão e um tipo de laranja amarga. Esfregou sal e óleo na galinha e a recheou com as frutas cortadas ao meio e folhinhas de tomilho, e reservou as casquinhas de yuzu. A galinha foi para o forno com três cabeças de alho descascadas. Serviu sobre quinoa com o molho da assadeira, depois de desengordurado, com um purezinho do alho e as raspas de yuzu. Ficou fantástico e bom para reflexão de como é gostoso fazer comida boa para alguém que se ama.

"Acredito que o que estamos fazendo no Noma, agora, é algo que vem de dentro... Revendo os seis últimos meses, os melhores momentos aconteceram quando o presente se juntou ao passado.... Não tenho certeza, mas hoje acho que a criatividade é a habilidade de guardar momentos especiais, pequenos e grandes que acontecem na vida, e depois ser capaz de juntá-los com o agora. Quando o presente e o passado se fundem, alguma coisa nova acontece."

ninahorta@uol.com.br


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