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Nina Horta

Exílio

E quando você está jantando num restaurante fino e percebe que não pertence àquele lugar?

Quem jamais mudou de país, de Estado ou de cidade, jamais perdeu sua casa, pode não entender o que é mudança, exílio. Na literatura do mundo inteiro é o assunto que mais aparece, a meu ver. Geralmente aquele que se muda é dono de um estranhamento, como diria Cortázar de "no pertenecer de todo". Cortázar dizia isso, mesmo? Tenho medo de citações erradas e fazer como o que fazem com Clarice Lispector ou Fernando Pessoa no Facebook.

Não sei como mudar de Pirassol da Praia para Nova York pode doer. Mas dói. Está passando todos os dias na TV, de madrugada, um documentário sobre Portinari. Bonito. O homem viajava o mundo inteiro, mas só pensava em Brodowski, nos roceiros de Brodowski, nas crianças de Brodowski, nos velhos enrugados de Brodowski. Dizia ele que só sabia pintar roceiros e, por mais que se esforçasse, tudo o que pintava virava roça, não tinha jeito.

Os indianos sonham com a Inglaterra, mudam-se para a Inglaterra, transformam-se em ingleses, mas escrevem livros de exílio e comem curries. Vejam, até o rabugento do escritor Naipaul é indiano até o cerne da alma (vegetariano doente). Mas fica lá, engastado numa casa de campo inglesa, como um lorde.

Para onde você voltaria se fosse obrigado? Qual a sua primeira terra, sua primeira comida, seus primeiros cheiros, sua toada? Já ouviram o Reynaldo Gianecchini contar que, ao ficar com raiva, desanda a puxar nos erres do interior de São Paulo que ninguém segura?

E os cariocas que moram em São Paulo a vida inteira e sempre esperam encontrar o mar quando viram a esquina? Uma padaria portuguesa. Prédios com cheiro de peixe frito na área de serviço. Maresia, gaivotas e ventinho na orla.

E a comida, então? O caseiro de Paraty nos servia um cuscuz de manhã, para tomar com café, e beijus com manteiga. A baiana de Vitória da Conquista me trazia (com carinho) uma batata-doce para comer às cinco da tarde. Era um lanche, do qual ri no começo, ao qual me acostumei e do qual sinto saudade. Às vezes, pasmem, na falta de batata-doce ela me trazia uma cuia rasa de farinha de mandioca. Só a farinha.

E tem uma hora em que você está distraído, jantando num restaurante caro, e sente aquele "no pertenecer" no ar. Você realmente não conhece aquele lugar.

Aquelas pessoas nunca atravessaram as ruas estreitas do centro de sua cidade, não compraram livros em livrarias pequenas e antigas, não sentiram de perto a negritude das gentes, nem o cheiro delas, nem o choro e o canto delas, não leram "Pituchinha é uma bonequinha", não comeram as empadinhas da padaria do prédio em que Aída Curi saltou ou foi currada, não acordaram com a notícia de que haviam posto fogo num mendigo, não foram tocadas pela sensualidade exacerbada da beira-mar, o calor pedindo nudez, não moraram no mesmo prédio em que Manuel Bandeira morou, e você pensa: "O que estou fazendo aqui, jantando vieiras com aspargos sob um lustre de cristal?". Não sou eu, com certeza.

Meu lugar é lá, na ala das velhas baianas. Me esperem que estou chegando para a feijoada.

ninahorta@uol.com.br

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ninahorta.blogfolha.uol.com.br


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