Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Comida

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Nina Horta

Implicâncias (de mãe e de Carnaval)

A mãe judia de 'O Complexo de Portnoy' é uma das melhores da literatura: ai do filho que não comesse

Somos muito implicantes. Falamos mal da transmissão do Oscar todo ano, não queremos assistir aos desfiles de Carnaval pela TV porque é um tédio. Falta de paciência nossa.

Lutei pela volta do Carnaval por um quarto de século, ele voltou com tudo, agora passo aos leitores a tarefa de não deixar que se perca muito da tradição, senão os desfiles podem virar o Cirque du Soleil.

Os escolhidos para a transmissão da TV foram simpáticos, normais, não acharam necessário revelar toda a estirpe da Nenê do Belenzinho. Sem contar um senhor muito afetado, cruzes, que pode ficar em casa da outra vez.

Mas, o que estou fazendo, meu Deus, a coluna pede comida e lá vou eu --sabe-se que Carnaval não combina com comida. Nada como um livro para se reler nessa época. Philip Roth, de vez em quando tenho saudade dele e o primeiro livro que li, há séculos, foi "O Complexo de Portnoy". Causou polêmica, vívido, brilhante, linguagem mais que ousada, um stand-up de autodepreciação, humor judeu. E a descrição da família e, o que nos interessa mais, a mãe judia, uma das melhores descritas em literatura, a definitiva, a mais dramática, manipuladora e adorável, que zelava por tudo que entrava e saía da boca de seu caçula. Invasiva, nem um centímetro de liberdade, repressora, e todas as culpas do mundo vão se acumulando no caráter do seu pequeno príncipe.

Quando chegava do colégio, ela acabara de preparar seu leite com biscoitos, coisa que o fazia pensar que ela e a professora eram a mesma pessoa, que se transformava diariamente. O pai era "gauche", a mãe formidável demais. Sabia fazer tudo. Gelatina, por exemplo, com os pêssegos flutuando nela, não ficavam presos no fundo, desafiando a gravidade. Um bolo de banana que era a própria banana. Ralava sua própria raiz-forte, chorando. Prestava uma atenção total no açougueiro para que passasse a carne na máquina kosher. Tentava proibir comidas fora de casa, especialmente hambúrguer com batatas fritas.

O filho obedece, faz tudo completamente dentro dos padrões, mas, sem saber o porquê, não há jamais um mês em que ela não o castigue, e que ele fuja de casa até a esquina, e que volte pedindo perdão, "perdão de que mesmo?", pensa ele, e prometendo ser o melhor filho do mundo por todo o resto da vida.

Mas havia as noites em que ele se recusava a comer. E comer vai fazer bem a ele, e ele recusa. Quer ser um menino magrinho a vida inteira ou virar um homem de verdade? O que vai ser quando crescer, fraco ou forte, um sucesso ou um fracasso, um homem ou um rato? Ele responde que só não quer jantar naquele dia. E a mãe se senta ao lado dele com uma faca de pão, dentes serrilhados e afiados.

O que, uma faca? E ele tem seis anos, não sabe guerrear ainda, não entende as estratégias de uma luta. Se ele não comer ela vai matá-lo! Como? Depois de tantos elogios ao seu potencial, à noite, só porque recusou umas vagens e uma batata assada, ela quer enfiar uma faca no seu coração?

E o que havia no mundo que não fosse saturado de perigo, pingando micróbios? Vai tentar resolver tudo no analista. Um livro de 1969, mas novo em folha.

ninahorta@uol.com.br

Leia o blog da colunista
ninahorta.blogfolha.uol.com.br


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página