Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Comida

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Nina Horta

Formas do gelo

Gelo impressiona mais num país tropical: quando brilha sob o sol, se espatifa em facetas diferentes

São perigosas as esculturas de gelo: podem ser kitsches demais. Mas quando feitas por um artista não pode existir coisa mais bonita. Costumávamos fazer as vasilhas grandes, de gelo, para ostras, frutos do mar. Sempre com um paninho escondido debaixo do avental para secar eventuais pocinhas de água. O gelo custa a derreter e tem alguma coisa misteriosa e pura que é imbatível no drama da mesa de um bufê. Quando é lindo, é claro. Quando é um cisne de pescoço torto, ui, ui, ui.

Tínhamos um senhor que trabalhava para nós, intuitivamente tailandês, que transformava melancias em ogros, rabanetes em joias e era obedecido pelo gelo, humildemente. Mas se americanizou, progrediu, começou a usar um tipo de trançado de ferro com um reservatório para a água derretida dos faisões alçando voo, que podiam pingar à vontade que a água caia na tal gaveta. Daí o feio era a geringonça que matava qualquer delírio artístico com sua funcionalidade.

Num país tropical, o gelo impressiona muito mais. Não há criança que tenha pegado o fim dos anos 40 com caminhões que deixavam quadrados de gelo sobre os muros, diariamente, que não se lembre da emoção das manhãs, com o gelo ao sol, granítico, silencioso, duro, brilhante, morto, pousado na paisagem. De repente o sol brilhava sobre ele, que se espatifava em facetas diferentes.

E a vontade, quantas vezes realizada, de estourar a pedra em pedaços no chão, junto dos tatus-bolinha, dos tufos de buxo de cerca, da espada de são Jorge, multiplicando a pedra em centenas de efeitos de luz.

E no frio de junho, saía um vapor das bocas das crianças acocoradas junto ao gelo sonhando com o mundo de onde ele viera.

E daí o anticlímax quando eram aprisionadas nuns panos de prato para não queimarem as mãos e colocados na cozinha, na geladeira baixa, cotó, azul, com um compartimento de zinco ondeado para o gelo. Um cheiro de lata se elevava perfurando o cérebro.

Daí perdia a mágica, conservava as carnes, os peixes, até que no dia seguinte voltava a reinar com sua graça no Jardim América. Acredito que acontecia o mesmo em todos os bairros. E as mães se especializavam em sorvetes, granitas, musses, pavês.

Agora, com o calorão, o sorvete está cada dia mais cotado. No Nordeste, com aquelas sorveterias mil sabores, a concorrência não sabe mais o que inventar. Numa delas escolhem-se os sabores que são colocados numa pedra individual de mármore gelada e misturados ali, na frente do cliente, produzindo o sorvete customizado, com o nome de quem o inventou. Bom para bufê, também, os movimentos mágicos de picar o sorvete geladíssimo, misturá-lo com farofas e caldas.

Na Inglaterra, Bompas & Parr, dois rapazes bem malucos, alcançaram o máximo de sua glória com as suas gelatinas, gelos e formas. Entrem no Google, já existem dois livros deles, "Feasting" e "Jelly", são exageradíssimos, mas podemos tirar ideias e as formas que vendem não têm iguais. Mas nem chegam perto dos antigos quadradões de gelo ao luar.

ninahorta@uol.com.br

Leia o blog da colunista
ninahorta.blogfolha.uol.com.br


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página