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Nina Horta

Um lugar bom para cozinhar

O peixe é fresco, o leite é tirado pela manhã de poucas vacas e as janelas olham para o jequitibá

É por fotografias antigas que vejo a cozinha do sítio de Paraty tomando forma.

Tínhamos a casa de farinha, de verdade, com toda a preciosa traquitana escura, envelhecida, o tacho de cobre e a alvíssima farinha que sai de lá. Uma mesa no meio e um fogão de lenha para esperarmos a construção da casa nova. As inevitáveis colchas de fuxico, santo Antônio na parede, um Debretzinho de uma pedra de Paraty no meio do mar, essas coisas que consolam os olhos, e as roupas todas dependuradas em araras de bambu.

A vida na casinha tipicamente brasileira, com seus lampiões, paredes de adobe e separações de madeira que não iam até o teto, era um outro mundo alegre.

A construção foi toda feita sem luz, mas dava gosto vê-la subindo com dificuldades sem fim. O cheiro profundo de madeira sendo trabalhada, toras enormes, as telhas velhas; todo o material era de restos da cidade de Redenção da Serra, por isso temos uma sala com oito portas na frente, para não desperdiçar nenhuma.

Os doidos são convincentes, e eu sabia que queria na cozinha, bem no meio, um enorme fogão industrial, com chapa e seis bocas. Quem o levaria pela estradinha de terra até o pico do morro? O "seu" Mariano, com uma noz-moscada dependurada no pescoço para evitar pressão alta e um caminhão que chacoalhava e falava sozinho na chuva.

Com minha infalível propensão para o acessório, encantei-me com um galo de louça que dava na nossa cintura e foi a primeira compra. Teve que subir a ladeira do sítio, de jipe, enrolado em edredons e abraçado pelo Bonalume, que bufava, sufocado pela ave imensa. Não, não foi a primeira, antes foi a cadeira de balanço. Quer coisa melhor que debulhar ervilhas balançando de cá pra lá?

Depois foram chegando o móvel de gavetinhas para mantimentos, as panelas de ferro penduradas no teto, a mesa de fazer queijos com suas formas de madeira.

É bom cozinhar lá: o camarão e o peixe são fresquíssimos, a horta tem uma couvinha muito verde, o leite é tirado pela manhã das poucas vacas e as quatro janelas olham para o jequitibá.

Mas o que me encanta mais na cozinha é a pimenteira que todo ano sobe até a janela como a oferecer suas pimentinhas ardidas. E mais o cheiro da chegada, de manjericão, e as pimentas-do-reino enroscadas em pilastras, cachos ainda verdes, o barulho da cachoeira, o ranger da cadeira de balanço sobre os ladrilhos hidráulicos.

As lulas e sororocas do meio do mar, o feijão tenro, a mandioca, o café sempre servido na mesma bandeja, os ovos vermelhos, a brancura da farinha fina, a coalhada que se parte na tigela, as jacas doces, a mexerica do Rio e, já ia me esquecendo, as bananas --o sítio era um bananal, e os cachos verdes ficam em pé encostados no batente das portas esperando amadurecer.

Sem dúvida, o peixe que se pesca é mais gostoso, idem para a galinha que se cria, para a farinha que se faz e a cozinha onde se cozinha. Hoje, querendo vender o sítio, me arrependo de não ter feito uma casa de cimento com piscina e heliporto, mas os anos de roça que passamos por ali não há dinheiro que pague.

ninahorta@uol.com.br

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ninahorta.blogfolha.uol.com.br


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