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Depoimento
'Prefiro carnes em que posso cravar os dentes com determinação'
JOSIMAR MELO CRÍTICO DA FOLHAVocê pagaria quase a metade de um salário mínimo nacional por um bife (com acompanhamento, serviço, água, estacionamento)? E eu, pagaria? Prestes a cometer o ato tresloucado, pensava no assunto enquanto aguardava, numa mesa da churrascaria Varanda, pelos 380 gramas do meu ribeye superpremium (o nível mais alto de maciez e gordura oferecido).
Quanto vale um prato? É principalmente a soma de custos objetivos (produtos, aluguel do espaço do restaurante, salários dos profissionais, lucro). Mas há também um fator menos ponderável: o da qualidade, e o da apreciação que ele provoca.
Um mesmo peixe pode custar muito mais quando servido por um fantástico sushiman, do que num restaurante vizinho: se sua habilidade for muito superior, as pessoas que o reconhecerem acharão justo pagar mais.
As carnes feitas com processos e raças semelhantes aos do japonês Kobe beef têm produção inegavelmente cara, dependendo de vários fatores para que se atinjam altíssimos graus de maciez e marmorização.
Mas quando chegou à minha mesa o valioso bife do Varanda, com suas irresistíveis marcas de grelha e seu perfume sedutor, já me vinha à mente o outro fator que condiciona preço.
Os japoneses adoram coisas macias para comer. Os peixes são sua iguaria; a carne bovina chegou a ser banida uma época, além de ter produção escassa e cara.
Para eles o padrão de boa carne é bem diferente do meu. Para um país como o nosso, com tradição churrasqueira nascida nos vastos pampas gaúchos e replicada pelo imenso território do país, o padrão de gosto é outro: o de carnes provenientes de gado alimentado em pastagens e com boas fibras para mastigar.
Os bifes tipo Kobe têm mais gosto de cereais (que sequer são o alimento natural dos bovinos) e uma maciez excessiva, até irritante para o meu padrão. Os melhores que já comi não eram cozidos, mas crus, como sushi, espécie de versão terrestre do toro (a barriga gorda do atum).
O bife servido no Varanda entrega o que promete, com sua suculência e maciez. Só não é minha praia. Posso imaginar turistas japoneses (e ricos) delirando frente àquele naco que lhes remete à fantasia de um peixe de quatro patas. Para eles, o preço pareceria justo, pela dificuldade, raridade e valor cultural, intangível, que ele representa.
Já eu, não pagaria novamente pelo mesmo prato. Adoro as várias técnicas de maturação de carnes que as tornam mais mastigáveis, mas esta não é maturada, é quase desnaturada na origem. E ali mesmo, no cardápio, há tantas opções em que posso cravar com mais determinação meus dentes, enquanto ainda os tenho em riste!