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Pasquale Cipro Neto

'Se o Corinthians é nós...'

Algum chato de plantão talvez diga que Tite nem de longe desconfia das regras da gramática e da estilística

A coisa no Corinthians anda feia. Faz tempo que a equipe do simpático e competentíssimo Tite escorrega aqui e ali. Pode ser que a recuperação comece contra o Bahia, mas, como escrevo este texto antes do embate do Timão contra o Tricolor da Boa Terra e não tenho bola de cristal...

Pois bem. Na terça, depois do silêncio pós-derrota para a Portuguesa, Tite falou, e, como quase sempre ocorre, a sua fala destoou do trivial do mundo da bola. Aliás, é dele a palavra "treinabilidade", motivo de gracejos aqui e ali. A "treinabilidade" de Tite lembra o "imexível", criado em 1990 por Rogério Magri, ministro do Trabalho de um ex-presidente (aquele mesmo que hoje é aliado de seus ex-inimigos --que Deus nos proteja!).

No caso de "imexível", Magri aplicou, por analogia, um processo absolutamente regular na língua (tocar/intocável; negociar/inegociável; discutir/indiscutível; mexer/imexível). O único "senão" de Magri foi ter empregado um vocábulo que até então nenhum dicionário registrava, por absoluta falta de uso e, consequentemente, de registro do termo. O primeiro dicionário que acolheu a criação de Magri foi o "Houaiss", cuja primeira edição, salvo engano, é de 2001. O "Aulete" eletrônico e a edição atual do "Vocabulário Ortográfico", da ABL, também registram a palavra.

A "treinabilidade" de Tite deriva de "treinável", que, "mutatis mutandis", segue o mesmo caminho do "imexível" de Magri: de "treinar" se faz "treinável", e de "treinável", "treinabilidade". Nenhum dos dicionários que consultei registra a mais do que viável e cabível palavra "treinável", registrada no "Vocabulário Ortográfico".

Pois bem. Voltemos à fala de Tite. Depois de algumas reflexões sobre a crise corintiana (sem "h", por mais que alguns ilustres corintianos queiram que se mantenha o "h" adjetivo), o comandante do Timão disse mais ou menos isto: "Se o Corinthians é nós, é nós na vitória ou na derrota".

Tite acertou ou errou ao flexionar o verbo "ser" na terceira pessoa do singular ("é")? Ou deveria ter dito "somos" ("Se o Corinthians somos nós...")?

Vejamos o que dizem as gramáticas, caro leitor. Em geral, elas dizem que, quando um dos polos ligados pelo verbo "ser" é um pronome reto ("eu", "tu", "ele/a", nós"...), o verbo concorda com esse pronome: "O treinador sou eu"; "O Brasil somos nós"; "A alma do time são eles"; "O Corinthians somos nós". A julgar por essa lição, o treinador "errou", certo?

Errado. Quando se trata do verbo "ser", mais do que a fria "regra" (que, a bem da verdade, nesse caso não é uma imposição, mas uma constatação do que predomina no uso da língua) vale a questão estilística, que leva em conta, essencialmente, a liberdade de enfatizar o que se quer enfatizar. Nos nossos grandes escritores, não faltam exemplos de "subversão" da "regra" relativa ao verbo "ser". Certa vez, ao falar da monumental Lygia Fagundes Telles, o grande Cony escreveu esta maravilha: "Não sou apenas eu que somos apaixonados por ela". E viva Cony! E viva Lygia!

E é óbvio que, consciente ou inconscientemente, Tite quis enfatizar o Corinthians, posto acima do "nós", ou seja, acima do grupo que ele elegantemente comanda. Como ele fez isso? Não custa repetir: com a opção pela forma "é" ("Se o Corinthians é nós...").

Algum chato (e preconceituoso) de plantão talvez diga que Tite nem de longe desconfia das regras da gramática e da estilística, que fez sem querer o que fez etc. Como qualquer mortal, o letrado e bem articulado Tite nem de longe precisa dominar as regras da gramática e da estilística para proceder como procedeu. Nessas horas, o que fala mais alto é a sensibilidade, a expressividade, atributos inegáveis do treinador do Corinthians, um dos estranhos no paupérrimo e árido ninho do futebol. É isso.


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