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Pasquale Cipro Neto

Sexta-feira negra

O poema de Mendes é irônico, caro leitor, mas, como a ironia anda um tanto imperceptível...

Mesmo a distância (ou "à distância", se você preferir), acompanhei o que ocorreu na sexta-feira passada Brasil afora na tal da "Black Friday". Eu estava do lado de lá do Atlântico, onde, por sinal, não houve "Black Friday". O macaqueamento das coisas dos States não faz muito a cabeça de boa parte dos europeus.

Até fora do Brasil houve comentários ácidos sobre as armadilhas do que a Forbes chamou de "Black Fraude". Por aqui houve reclamações a valer. O embuste talvez comece no próprio nome da coisa, posto, obviamente, em inglês, quiçá para que justamente não signifique coisa alguma, já que, entre nós, a sexta-feira negra (tradução literal de "black friday") é outra coisa.

Bem, como nem todo brasileiro é pateta, a criatividade logo entrou em cena, e a tola e deslumbrada "Black Friday" logo virou "Black Fraude", "Black Fria" etc.

Além de ser grande especialista em macaquear coisas dozeua, o que inclui ignorar solenemente o que significa o nome da coisa macaqueada, o Brasil gosta de ignorar nomes de coisas nacionais. Quer um exemplo? O que significa "faixa de pedestres" em qualquer lugar do mundo? Por aqui "faixa de pedestres" significa "faixa de automóveis". O nome não vale nada. Atreva-se a mostrar com os dedos a faixa de pedestres a algum bandido, digo, motorista que a esteja desrespeitando! Sabe o que ele vai fazer? Vai mostrar-lhe outra coisa --também com os dedos, ou melhor, com um deles, em riste! Não preciso dizer que dedo é esse e o que o gesto significa, certo?

Mas voltemos à "Black Friday" e à nossa infrene compulsão pelo macaqueamento de coisas dozeua. Sugiro-lhe a leitura de uma obra-prima da nossa literatura, a "Canção do Exílio", não a original, de Gonçalves Dias (também belíssima), mas uma de suas tantas paródias, no caso a do grande poeta mineiro Murilo Mendes. Assim começa a obra-prima, publicada há mais de 80 anos e ainda atualíssima: "Minha terra tem macieiras da Califórnia/ Onde cantam gaturamos de Veneza...". É óbvio que minha terra não tem macieiras da Califórnia e que nelas não cantam gaturamos de Veneza (que não há em Veneza; são pássaros sul-americanos)...

O poema de Mendes é irônico, caro leitor, mas, como a ironia anda um tanto imperceptível (vide o que sofreu Antonio Prata quando publicou "Guinada à direita", em 03/11), é sempre bom deixar claro que certas coisas não devem ser lidas ao pé da letra. A coisa anda feia!

Essa coisa toda me trouxe à mente "Fotografia 3 x 4", genialíssima canção do querido Belchior. Diz a letra: "Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade --disso Newton já sabia!--/ Cai no sul, grande cidade". Para quem não entendeu a relação do fragmento da canção de Belchior com a história da "Black Friday", lá vai: a tal da "Black Friday" é coisa de lá de cima, do "Grande Irmão do Norte", como dizem (ironicamente, pelo amor de Deus!!!) alguns dos críticos do american way of life. Agora sugiro repetir os versos de Belchior: "...o que pesa no norte, pela lei da gravidade --disso Newton já sabia!--/ Cai no sul...".

Fiquei intrigado com o fato de os defensores do ultramegachatíssimo politicamente (in)correto não se incomodarem com o uso da expressão original ("Black Friday"), cuja tradução literal, como já vimos, é hipersuperultramegaterapoliticamente incorreta. Mas, com licença dos chatonildos, a julgar pela versão original (a dozeua), a sexta passada ficou mais para sexta-feira negra do que para "Black Friday". É isso.


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