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Minha história Kelen Ferreira, 20

A caminho do recomeço

Sobrevivente do incêndio na boate Kiss vive rotina de tratamento e prefere ficar em casa, mas não esconde as queimaduras dos braços

RESUMO A universitária Kelen Ferreira, 20, sobreviveu ao incêndio da boate Kiss. Perdeu uma perna por ferimentos sofridos na ocasião e hoje usa uma prótese. Também teve graves queimaduras nos braços. Após dois meses e meio internada, voltou ainda na fase de recuperação à faculdade de terapia ocupacional. Hoje, quer "celebrar a vida".

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FELIPE BÄCHTOLD ENVIADO ESPECIAL A SANTA MARIA MELINA GUTERRES COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM SANTA MARIA

A nossa vida deu uma volta grande. Eu me olho no espelho e não me sinto a mesma de antes. Vai doer sempre na gente. Além das marcas físicas, as psicológicas.

Eu não sabia se iria à boate, não tinha dinheiro. Minhas amigas insistiam. Liguei para a minha mãe e disse: "Vou sair hoje". Ela respondeu: "De novo? Te cuida".

Fomos a pé. Já tinha uma fila até a esquina para entrar. Lá dentro, fomos direto para um bar no fundo. Ficamos por lá a noite inteira.

Lembro que foi quando começou uma música do [cantor] Naldo, que a gente gostava e dançava. As gurias que estavam comigo falaram que iriam ao banheiro. Disse que não ia junto. Elas foram e deu a confusão. Não ouvi a música parar. Ninguém avisou nada no microfone do que estava acontecendo.

Quando vi, cruzaram umas 500 pessoas na minha frente [fugindo]. Um bolo de gente. Pensei que fosse briga. Quem estava perto de mim sumiu, correu. Fiquei sozinha.

Comecei a correr, mas caí na frente de um bar. Pensei em voltar para buscar as gurias no banheiro do fundo. Dei uns três passos para trás, e um homem de branco me pegou pelo braço e disse: "Tu não vais". Ou foi Deus ou foi o meu anjo da guarda. Corri, de salto, em direção à porta.

Não tropecei em ninguém, mas acabei caindo de joelhos. A fumaça já tinha tomado conta de tudo em cima de mim. Tapei o nariz com o meu vestido e comecei a rezar. Eu não queria morrer. Era uma gritaria, mais de mulheres, um desespero mesmo.

Achei que ia morrer com o calor: sentia que meus braços estavam fritando. Disseram que a temperatura lá dentro chegou a 500ºC.

Foi então que outro homem me puxou. Meu pé ficou [preso] nas pessoas. "Estrangulou" meu tornozelo.

Quando ele me colocou lá fora [na rua], um dos guris que foi conosco me viu. Ele me pôs no carro de um amigo e me levou ao hospital. Saí antes de bombeiros e ambulâncias chegarem.

Fui a segunda ou terceira a chegar ao hospital. Estava com o rosto e braços pretos.

Lembro como foi até ser entubada, umas 4h30. Só lá pelas 12h deixaram meu pai entrar. Ele não me reconheceu. Pensou que o queimado no braço eram tatuagens. Fiquei 15 dias inconsciente.

INTERNAÇÃO

No leito da UTI ainda, pedi para colocarem uma TV. Foi aí que vi que já eram 235 mortos. Só em março me contaram sobre minhas amigas [que morreram].

No hospital, um [sobrevivente] ia visitar o outro nos quartos. As famílias se tornaram amigas, conversavam. Todo mundo se apoiava. A gente se fala até hoje. Só saí depois de 78 dias internada.

De maio a julho, cursei o quarto semestre da faculdade à distância. Os professores mandavam por e-mail trabalhos e eu fazia em casa.

RETOMADA

Faço fisioterapia de segunda a quinta-feira. Às quartas e sextas, tem a terapia ocupacional. Também faço acompanhamento em Porto Alegre para cirurgia plástica, com fisiatra e com pneumologista.

Em dezembro, tinha muita secreção no meu pulmão. Preciso manter o acompanhamento por mais quatro anos.

Hoje, prefiro ficar em casa.

A primeira vez que saí foi em novembro e fiquei do lado da porta. Olho o teto, a saída de emergência, se tem escada ou não.

Antes, todo final de semana a gente saía e estava mais na boate Kiss.

Já me acostumei em sair na rua assim [com as queimaduras à mostra]. Dou risada das pessoas que ficam me olhando. Mas não vou passar calor por causa dos outros. Tenho que me aceitar assim.

Eu já surpreendi muita gente pela maneira como eu tento superar. A gente vai reconstruindo a vida.


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