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Pasquale Cipro Neto

'A impressão digital dos dedinhos'

Por cochilo, ignorância ou perda da noção da história das palavras, ninguém está livre de um pleonasmozinho

Num telejornal, fala-se da estúpida legislação do Paquistão, que leva às barras da Justiça uma criança de 9 meses, acusada de tentativa de homicídio. Se você acha o Brasil um horror, console-se: há coisas (muito) piores mundo afora. Pois bem. Ao relatar o suplício a que o pequeno Mussa foi submetido, a repórter disse que o menino "chorou ao ter que deixar a impressão digital dos dedinhos".

É claro que houve um cochilo da jornalista, que (provavelmente não por ignorância, mas por distração) cunhou a redundante construção "impressão digital dos dedinhos". De origem latina, o adjetivo "digital" se refere a "dedo", por isso a impressão digital só pode ser a impressão dos dedos. Bastaria ter dito "chorou ao ter que deixar a impressão dos dedinhos" ou "...ter que deixar as digitais".

Não sei se o texto foi dito de improviso ou se foi lido, caso em que o cochilo se torna mais grave, já que a escrita impõe concentração, releitura etc.

O fato é que, por cochilo, por ignorância ou por perda da noção da história de determinadas palavras, ninguém está livre de um pleonasmozinho. Quer um belo exemplo? O caro leitor certamente já ouviu ou leu algo como "O técnico decidiu manter o mesmo time que enfrentou o...".

Ao pé da letra, se o técnico vai manter o time, a equipe escalada só pode ser a mesma que entrou em campo na partida anterior ou no primeiro tempo daquele jogo, por exemplo, mas... Mas será que não é um tanto exagerado analisar tão radicalmente esse tipo de construção? Será que, quando se diz "o técnico vai manter o mesmo time que enfrentou o...", não se usa a palavra "mesmo" porque não se sente mais na palavra "manter" a força semântica necessária para que se dispense o uso de "mesmo"?

Um caso que volta e meia se vê é parecido com este: "Fulano fez uma solicitação pedindo o equipamento X para o dia Y". Ora, quem faz uma solicitação pede, não? Bastaria dizer "Fulano solicitou o equipamento X..." ou "Fulano pediu o equipamento X..." ou ainda "Fulano fez a solicitação/o pedido do equipamento X...".

Cabe aqui uma reflexão sobre a fala e a escrita. Na fala é razoavelmente justificável o emprego de certos termos que reforçam ou "ressuscitam" o sentido literal de algumas palavras, o que talvez não ocorra na escrita, mais calculada, mais "racional". Na escrita, com tempo para uma releitura, percebe-se que as frases sobrevivem sem os termos pleonásticos ("O técnico decidiu manter o time que...").

Convém lembrar também os "pleonasmos consagrados", quase sempre resultantes da perda da noção literal do significado de uma palavra. Quer um belo exemplo? Quem é que nunca disse que Fulano está "num abismo sem fundo"? Pois o caro leitor sabe qual é o significado literal de "abismo", que foi do grego para o latim? Prepare-se: "sem fundo". Sim, ao pé da letra, "abismo" significa "sem fundo", portanto "abismo sem fundo" é expressão pleonástica, mas é claro que ninguém deve analisar com tamanho rigor esse caso e outros análogos.

Será que o caso de "impressão digital dos dedinhos" se assemelha a algum dos citados neste texto? Parece que não. Independentemente da razão que levou a jornalista a emitir a construção pleonástica, convém evitá-la em textos mais elaborados. Esse caso, de emprego de termo específico, técnico, que também se vê em "erário público" ou "quorum mínimo", não frequenta os textos formais da língua. Basta dizer "impressão digital", "erário" e "quorum". É isso.


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