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Cotidiano

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Antonio Prata

Charutos e chupetas

O pontífice, carrancudo e indignado, responde: 'Quem disse que você veio ao mundo para ser feliz?'

Numa moldura que já foi dourada, no fundo da sala do meu pai, fica a foto mais antiga da família, de 1927. São 35 pessoas, metade de pé, metade sentada em cadeiras, num quintal em Uberaba (MG). Meu bisavô tem 21 anos, minha bisavó, 19, meu avô é um bebê de colo, mas todos parecem velhos: até meu avô, o bebê, olha pra câmera com aquela austeridade das criancinhas de antigamente, tão sério que é possível imaginá-lo levando à boca, depois do clique, não uma chupeta, mas um charuto. (Já se usava chupetas, em 1927? Não? Então, olha aí.)

Sempre que visito meu pai, paro diante da foto e acabo meio triste, com pena dos nossos "mortos de sobrecasaca". Sei que é tolice achar que todos eram infelizes em 1927,

como se no passado as pessoas existissem em preto e branco, os homens fossem condenados ao tabelionato ou à tuberculose, as mulheres à fofoca ou à histeria e a gargalhada só tivesse vindo ao mundo com os "babyboomers". Lembro então do Pixinguinha, do Louis Armstrong, do Oswald de Andrade, dos vermelhos, azuis e amarelos do Miró -dos amarelos, principalmente- e escapo da armadilha do anacronismo. (Talvez, bom mesmo fosse em 1927.)

Semana passada, meu tio Augusto fez 60 anos e deu um almoço pra família. No fim da tarde, nos juntamos no quintal e tiramos uma foto. Ontem, passei um bom tempo diante da imagem, recebida por email: ao todo somos 46 pessoas e não há uma única que não esteja sorrindo. Não é nos lábios, porém, que mais antagonizamos com nossos antepassados p&b, é nas mãos. Na foto de 27 elas estão quase todas escondidas: uns as metem nos bolsos, uns as colocam às costas, outros cruzam os braços e as enfiam nos sovacos; as poucas à mostra pousam comportadas no colo de distintas senhoras e senhoritas, como cães muito bem adestrados aos pés de seus amos. Na foto da semana passada, as mãos não são cães adestrados, são pássaros se debatendo numa gaiola: hang looses, Vs da vitória, joias, trejeitos de rappers -um tio de 54 anos, com os indicadores e polegares convertidos em pistolas, finge atirar no fotógrafo, como um caubói. Ou um Zé Pequeno?

Nem faroeste, nem Cidade de Deus: a pose me remeteu foi a Fellini e quando vi estava naquela sauna de "8 e 1/2", ouvindo Guido/Mastroianni declarar a um cardeal: "Eminência, eu não sou feliz". O pontífice, meio indignado, responde: "Quem disse que você veio ao mundo para ser feliz?". Na gravidade da foto de 1927, vejo a indignação do cardeal. A felicidade é frívola: os lábios recusam os prazeres terrenos e as mãos, que servem para agarrá-los, se cobrem de pudor. Já na foto da semana passada, vejo o desespero de Guido/Mastroianni, como se mandássemos à lente do iPhone recado inverso ao que pretendíamos com nossos sorrisos e gestos de surfistas, rappers, caubóis e candidatos recém-eleitos: "Eminência, eu não sou feliz" -tão desprotegidos que é até possível nos imaginar depois do clique e do almoço levando à boca, em vez de charutos, chupetas.

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PS: Na quarta o Marcelo Coelho escreveu sobre tema bem parecido, com muito mais propriedade. Pensei em desistir desta crônica, mas decidi ir em frente: se for abandonar todo assunto que o Marcelo Coelho abordou com propriedade, terei que começar a estudar química orgânica.


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