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Minha História - Ademilson José de Oliveira, 29

Meu pai, um indigente

Após três anos de buscas, família descobre que homem foi para vala comum em SP por falha do Estado e da polícia

ROGÉRIO PAGNAN REYNALDO TUROLLO JR. DE SÃO PAULO

RESUMO

O operador Ademilson José de Oliveira, 29, morador de São Carlos (a 232 km de São Paulo), descobriu em 2012 a morte do pai, três anos após ter registrado seu desaparecimento na polícia. O aposentado Eulálio de Oliveira, então com 67 anos, foi enterrado em 2009 como indigente durante uma visita à capital paulista, mesmo tendo documento de identificação.

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Estava assistindo ao "Jornal Nacional" em 2012 quando senti um aperto no coração. Vi meu pai caminhando na cracolândia de São Paulo.

Não vi o rosto, a imagem mostrava apenas um homem de costas, mas poderia jurar que era ele. Puxava a mesma perna, usava boné, a mesma camisa, calça, tudo era igual.

Meu irmão, meus amigos e todos os conhecidos que sabiam do desparecimento do meu pai passaram a me ligar para dizer que também viram a reportagem.

Era uma luz depois de três longos anos de escuridão.

Decidi procurar a EPTV São Carlos, afiliada da TV Globo, para nos ajudar. Quem sabe teriam contato de alguém para nos levar àquela pessoa ou confirmar a identidade dela.

Gravamos uma entrevista, contamos toda a nossa dor e nos preparamos para receber novidades ainda melhores.

Antes de a matéria ir para o ar, porém, uma pessoa da emissora ligou e disse para procurarmos a polícia.

Voltamos ao 5º distrito policial, o mesmo em que estivemos no dia 26 de maio de 2009 para comunicar o desaparecimento do meu pai e onde fomos orientados a voltar outro dia. Para eles, as 24 horas ainda eram pouco para considerá-lo desaparecido.

Foi o mesmo DP que procuramos outras tantas vezes.

Acho que nossos pedidos entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Nunca investigaram nada. Mas, aos jornalistas, os policiais demonstraram algum trabalho, já que iriam aparecer na TV.

Descobriram algo "recente". Existia um boletim de ocorrência, da mesma Polícia Civil, sobre a morte de meu pai em 24 de junho de 2009. Menos de um mês após comunicarmos aos policiais sobre o desaparecimento.

Ninguém nos ligou, ninguém nos avisou. Nada.

Ao contratar um advogado, descobrimos algo ainda pior.

Meu pai, por falta de parentes para reclamar seu corpo, foi enterrado como indigente. Meu pai, um indigente.

Isso, para mim, é o maior desrespeito que poderiam fazer com um ser humano.

Como a família não reclamou? Como?

Tínhamos ligado em todos os hospitais da capital. Até nos prontos-socorros, incluindo o PS de Santana, onde depois descobrimos que meu pai tinha ficado internado. A resposta era a mesma. Não tinham informações.

Não deixamos de ligar nem nos IMLs. Preferíamos conhecer a verdade, mesmo que fosse triste.

Não ligamos apenas. Eu, meu irmão e minha mãe estivemos uma vez pessoalmente na capital. Minha mãe já era separada do meu pai, mas fez questão de ir.

Fomos à região do Brás, onde ficava a igreja que meu pai disse que visitaria.

Fazia seis meses que ele acompanhava missas pela TV e contou que iria para São Paulo para tentar ver de perto o bispo Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial.

Os funcionários da igreja nos repetiram o que já haviam dito pelo telefone. Os cultos reuniam muita gente e era impossível reparar em alguém no meio da multidão.

Percorremos algumas pensões, hotéis. Perguntamos em tudo em que foi possível.

Era nossa primeira vez na capital. Uma cidade grande demais. Quando começou a anoitecer, achamos perigoso andar pela região e decidimos continuar procurando pelo telefone mesmo.

Tudo isso para que meu pai fosse enterrado como indigente numa vala comum.

Tudo isso nos dói muito. Será que essas pessoas não têm consciência de que podem passar por isso também?

Não sei nem o cemitério onde ele foi enterrado. Não conseguimos transferi-lo para São Carlos porque, segundo o advogado, como passou muito tempo, não tem nem mais o túmulo de indigente dele.

Tudo que temos que me garante que meu pai está morto é um pedaço de papel, uma certidão de óbito.

E se esse papel estiver errado? Se foi alguém que morreu e carregava os documentos dele? Quem garante?

Se tivessem entrado em contato quando ele estava internado ou logo depois da morte, tudo poderia ter sido diferente. Poderíamos ter reconhecido seu corpo. Quem sabe ele não estaria vivo até hoje?

E aquele homem na cracolândia? Quem era?

Se eu tivesse tido oportunidade de ir ao hospital onde ele ficou mais de 20 dias, teria aproveitado para dizer algo que nunca disse: pai, te amo.

Nunca disse. Talvez por vergonha ou por não ter ouvido essa palavra da boca dele também. Ele era muito sério.

Até penso que inventou a história da igreja para ir para São Paulo. Talvez soubesse de alguma doença grave e não queria nos preocupar.

Não perco a oportunidade de dizer ao meu filho que o amo. Tentarei ser como meu pai foi pra mim: um homem comum dando o melhor de si para cumprir a função de um super-herói.

Não um indigente.


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