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Cotidiano

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Antonio Prata

Sozinho

Entrei no ônibus assustado, achando estranhíssimo que ninguém soubesse o que tinha acontecido

Ele virou pra mim com a testa franzida e a boca entreaberta, como se fosse perguntar as horas ou o itinerário de um ônibus, mas logo se voltou pra frente, olhou aflito a loja de instrumentos musicais do outro lado da rua, então me encarou perplexo, caiu sentado na calçada --e morreu.

Eu nunca tinha visto alguém morrer. Mortos, sim, alguns, mas sempre no caixão, entre flores e parentes, naquele clima dos velórios que, se não anula o absurdo da morte, ao menos nos prepara para o encontro. Ali no ponto de ônibus, porém, não teve preparo: três segundos antes o sujeito estava vivo, a 40 centímetros de mim, esperando o Parque Ipê ou o Brasilândia, três segundos depois, não estava mais. Morreu sentado, de olhos abertos, a perplexidade aos poucos largando seu rosto e se agarrando ao meu.

Tentei levantá-lo, com mais dois caras do ponto --ainda não sabíamos que estava morto--, mas logo saiu uma mulher da lanchonete, disse que era enfermeira, botou dois dedos no pescoço do homem e, um pouco depois, fez um não com a cabeça. Sob suas instruções, tentamos uma massagem cardíaca, mas não funcionou. A enfermeira ligou para um número da prefeitura e, num desses atos de generosidade de que só as mulheres são capazes, disse que ficaria lá até o sistema funerário chegar.

Meu ônibus chegou e entrei assustado, achando estranhíssimo que ninguém ali soubesse o que tinha acabado de acontecer, que ninguém ali desconfiasse que do lado de lá da lataria havia um corpo que instantes atrás estava vivo e que o mesmo poderia --e vai-- acontecer a qualquer um de nós, a qualquer momento.

Sei que, em breve, essa cena estará guardada em alguma gaveta da memória e, com o tempo, vai amarelar, como feliz e infelizmente tudo amarela, mas agora a trago tatuada no verso das minhas pálpebras: é a primeira coisa em que penso, ao acordar, é a última coisa em que penso antes de dormir; o homem me olhando, curioso, olhando a vitrine da loja, aflito, me encarando perplexo --e morrendo.

Repasso os três atos, vez após outra. A percepção de que algo ia errado e a busca de cumplicidade. A compreensão de que a cumplicidade não serviria para nada e o olhar para a frente, como se quisesse confirmar que o mundo ainda estava ali, que a rua continuava existindo, os carros passando, que a loja de instrumentos musicais seguia no mesmo lugar, dando um desconto de 30% no violão Di Giorgio da vitrine. Por fim, quando entendeu que o mundo permanecia intacto, mas ele, não, veio a perplexidade. Havia menos revolta do que susto em seu olhar. Então é assim? Num ponto de ônibus? Numa terça-feira, às 15h37, entre uma lanchonete e uma loja de instrumentos musicais, sem trombetas nem iluminações?

Quando fico muito aflito --e sabendo que não conseguiria tirar a cena da cabeça--, tento ao menos mudar o enfoque da memória. Lembro da enfermeira que se prontificou a aguardar no ponto até a chegada do serviço funerário. Vejo a mulher ali, esperando por horas, talvez, faltando a não sei quais compromissos, a imagino ligando para uma vizinha, pedindo pra olhar os seus filhos quando chegarem da escola, e, por um momento, a mesquinhez da morte é atenuada por esse ato de humanidade, tão belo quanto inútil: a recusa em deixar o morto sozinho.


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