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Jairo Marques

Palavras invisíveis

Negar o direito de acesso à leitura é aprisionar pessoas em um abismo de dúvidas sobre si mesmas e sobre este mundo

Imagine você que, de repente, um pombo-correio deposite em sua porta uma obra literária que promete estar recheada de textos inéditos dos modernos bambambãs das letras como o meu vizinho de coluna Antonio Prata, como a cativante Eliane Brum ou como o "maraviwonderful" Luis Fernando Verissimo.

Certamente, aqueles que têm paixão pela boa crônica, pela palavra que diverte, emociona e instiga o enfadonho dia a dia irão agradecer a nossa senhora da bicicletinha pelo presente inesperado e correrão para a cadeira da vovó tomar banho de cotidiano.

Mas, como alegria de pobre dura pouco, logo ao abrir o misterioso livro, pense que você não irá encontrar verbos, adjetivos e exclamações convencionais, mas, sim, intermináveis pontinhos que parecem não ter lógica. Tudo escrito em um tal braile.

E é com a intenção de provocar um misto de susto com frustração que a Fundação Dorina Nowill está lançando o "Palavras Invisíveis", que chegará totalmente escrito com marcações em relevo à casa de centenas de formadores de opinião do país.

Como dona Dorina era "difinitivamente", como diria minha tia Filinha, uma pessoa do bem, não vai ser necessário a ninguém arrancar os cabelos com a pinça para ter a tradução da obra e ir ao encontro das sacadas regadas a malagueta de Tati Bernardi.

No site da instituição (fundacao dorina.org.br), o povão puxador de cachorro ou batucador de calçada com bengala gravou vídeos traduzindo os escritos e acalmando os desesperados pela boa história, tudo de bom grado.

A situação inversa, porém, a da falta de acesso dos cegos a livros que os atendam, está a "milianos", como se diz lá em Minas Gerais, de ser sensibilizada e resolvida. Menos de 5% da literatura existente na terra do gênio Machado de Assis está disponível para ser devorada com a ponta dos dedos e com a concentração da cachola.

São raras as obras em braile aguardando em bibliotecas --em livraria, dá pra dizer "nunca vi nem comi, eu só ouço falar". Livros digitais e audiolivros, mesmo em plena era da tecnologia, não se tornaram prática.

Por mais simples que pareça encontrar uma saída inclusiva --a cada livro produzido no país haver cópias em versão que pode ser lida ou ouvida por dispositivos eletrônicos--, está difícil combinar isso com as editoras.

O resultado? Toca o cego ser acusado de larápio ao digitalizar, por conta própria, o seu "Grande Sertão Veredas", o seu "O Povo Brasileiro" ou ainda o seu "Tratado da Anatomia Humana". Toca crianças com deficiência visual ficarem meses para conseguir trilhar o seu "Caminho Suave" na escola devido à inoperância pública de pensar rapidamente na diversidade.

Deixar de ser o estigmatizado "ceguinho da porta da igreja" para conquistar espaço de cidadão passa, necessariamente, pelo acesso à educação. Disso, os 6,5 milhões de brasileiros com algum tipo de comprometimento na visão sabem de olhos fechados. Cabe à sociedade enxergar também.

A sensação de nulidade diante de um livro agride de maneira profunda quem busca conhecimento, entretenimento e prazer por meio da palavra. Negar o direito de acesso à leitura é aprisionar pessoas em um abismo de dúvidas sobre si mesmas e sobre tudo deste e de outros mundos.


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