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Francisco Daudt

Gol de quem?

Há momentos em que uma característica da infância surge com força absoluta: o pensamento mágico

Ele está usando a mesma cueca desde que o seu time venceu, no primeiro jogo. O amigo é enviado várias vezes à cozinha para pegar uma cerveja na geladeira, pois o gol decisivo aconteceu justamente numa ocasião dessas. Promessas são feitas, pensamento positivo, todos juntos, vamos, de repente é aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão... e o gol se fez.

Gol de quem? Do artilheiro? Da superstição? Há momentos em que uma característica da infância da humanidade, e de nossa infância pessoal, surge com força absoluta: o pensamento mágico.

Durante as dezenas de milênios da infância de nossa espécie, nunca se ouviu um único "não sei, mas quero saber" como resposta a qualquer indagação. Todos tinham uma explicação mágica (não lógica) na ponta da língua. A peste assola Tebas? Os deuses estão irados, pois há um criminoso entre os tebanos. A Espanha foi derrotada? Corre nas redes sociais uma teoria da conspiração "provando" que os seus dirigentes foram comprados, num documento seriíssimo assinado por um gringo (que, o Google mostra, é o mesmo que "explicou" as convulsões de Ronaldo em 1998, além de outros grandes tormentos futebolísticos "inexplicáveis").

O pensamento mágico foi consequência (e continua sendo) da mistura de impotência com vontade de controle. O humano agora sabe que há relações de causa e efeito. Umas, ele controla. Outras o surpreendem, e ele não sabe de onde vêm. Como ficou deslumbrado com essa relação entre coisas que faz e suas consequências, desconhece o acaso. Pior. Nega-o. Nem lhe passa pela cabeça de que não haja causas para qualquer acontecimento. "Nada é por acaso", ouço nauseado até hoje o senso comum repetir.

Quando pequeno, eu era naturalmente impotente diante das tempestades ruidosas de verão. Aqueles trovões me assombravam. Queria muito que eles passassem, queria muito ter controle sobre eles. Foi quando me ensinaram que, se eu queimasse a palha benta do domingo de ramos, cuidadosamente guardada atrás da estátua de são José, a tempestade passaria em pouco tempo. E não é que funcionava mesmo? Muitos anos se passaram até que eu entendesse que a expressão "chuvas de verão" se traduz como coisa passageira. Até então eu me sentia poderoso ao terminar com elas.

A situação do torcedor não é diferente. Impotência e vontade de controle. É claro que uma torcida vibrante influencia jogadores, mas ela precisa estar no estádio. Na frente da televisão, fica difícil. Eis o porquê da irrupção forte do pensamento mágico, dessa regressão à infância que faz parte do encantamento que o esporte desperta, junto com a beleza plástica e o sentimento de nação.

Não foi senão na Grécia clássica, há 2.400 anos, que o "não sei" indagador e pesquisador pôde aparecer, dando à luz os embriões do pensamento filosófico e científico. Quase ontem, em termos históricos.

Uma vez médico, eu me deliciava com a pergunta dos clientes "O que eu tenho, doutor?" Dizia: "Ainda não sei. Mas já sei que não é câncer nem nada fatal". Era toda a tranquilidade que eles precisavam.

www.franciscodaudt.com.br


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