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Bolshoi, via cracolândia

No meio da degradação da região central de São Paulo, meninas de 3 a 15 anos aprendem balé e são observadas por 'olheira' da escola internacional

LEANDRO MACHADO DE SÃO PAULO

Elas não sabem, mas estão sendo analisadas, medidas, selecionadas. O tamanho de suas pernas, o porte físico, a flexibilidade das articulações. Ali pode haver alguma com um potencial capaz de levá-las para bem longe dessa região degradada do centro de São Paulo.

Ainda não são bailarinas. São meninas que passam tardes a dançar na cracolândia.

"Nessa idade, nem precisa saber dançar. Mas em alguma pode haver uma grande bailarina", diz Priscilla Yokoi, 31, bailarina e uma das "olheiras" do Teatro Bolshoi no Brasil, a única "franquia" da renomadíssima escola de balé fora de Moscou.

Elas têm entre três e quinze anos. Moram no centro, em regiões da própria cracolândia e da favela do Moinho (região central de São Paulo).

Aprendem balé três tardes por semana, em um salão alugado pela Cristolândia, projeto social de uma igreja evangélica que trabalha com viciados em crack do centro.

São 20 meninas. Ensaiam no salão, divididas em dois grupos --as mais velhas, de até 15 anos-- e as mais novas, de três a sete.

Nos intervalos, ganham um lanche. Têm aulas sobre a Bíblia. Naquela tarde de julho, conheceram a história "Esaú e Jacó". Depois rezam, olhos fechados e mãos dadas.

"No centro, há muitas crianças filhas de viciados, que não têm nem onde morar. Aí resolvemos dar aulas de balé para as meninas", afirma Joana Machado, de 26 anos, coordenadora da Cristolândia.

Ali ao lado do tablado delas, há um tatame para a aula de jiu-jitsu dos meninos.

A tarefa da bailarina Priscilla é selecionar meninas com aptidão e fazer delas futuras bailarinas. Não é a primeira vez que passa por ali.

"Analiso o físico, principalmente, e se elas têm porte de bailarina", diz.

As meninas não foram avisadas da seleção. Escolhidas pela olheira, passarão ainda por outros testes neste ano.

Em outubro ocorre a grande final em Joinville, Santa Catarina, sede da escola. Lá estarão as escolhidas em fases preliminares do ano passado. Em 2013, quando concorreram meninas pré-selecionadas em 2012, a concorrência para fazer parte da escola em terras catarinenses foi de 54 candidatas para cada uma das 40 vagas.

Priscila se aproxima de Hilda Machado, 10, alta e magra, toda vestida de rosa. A "olheira" pressiona as pernas da garota para os lados. Para, analisa. "Ela tem todo o jeito de bailarina, é linda", diz.

Hilda vive com a mãe em um barraco na favela do Moinho. Tímida, quando vai falar com a reportagem, começa a chorar. Corre para o banheiro se esconder. Faz balé há três meses. É a primeira selecionada do dia por Priscilla, mas ainda não será avisada. "Não vamos falar agora porque as outras meninas podem ficar tristes por não serem escolhidas", diz Joana.

ROUPA

"Passé", "plié"... Quem vê a alegria de Gabriela, 8, ensaiando os primeiros passos não desconfia que a menina perdeu os pais para o crack.

Seu pai morreu e a mãe está desaparecida. Uma vizinha a pegou para criar. Vivem em um quarto na cracolândia.

É a mais animada da turma. "Ela não para, mas é daquelas que a gente precisa dar banho. Nunca tinha nem ido à escola", diz Joana.

Gabriela não passa no teste. Assim como não sabia que estava sendo analisada, não precisa saber disso também.

Outras três garotas são selecionadas. Uma delas é Caroline de Jesus, 10. "Gosto de dançar desde pequena", diz.

Mais "veterana" em testes do Bolshoi é Vitória Beatriz de Oliveira, 9. "Um talento", diz Priscila. Elas se conheceram em 2013, quando a menina foi escolhida ali, no salão em meio à cracolândia.

Passou por outras etapas --entre elas uma audição em Paulínia. Agora fará o teste final em outubro. Se for aceita, terá que se mudar para Joinville com a família.

O curso profissional de balé dura oito anos. A escola fornece uma bolsa com direito a alimentação, material, roupas e transporte.

Hoje, Vitória vive em um quartinho no centro com a mãe e dois irmãos. "Quando danço, todo mundo me dá parabéns", diz ela, que começou no balé há quatro anos.

No ano passado, Priscilla Yokoi se impressionou tanto com o talento da menina que resolveu usar seu caso para procurar por patrocínio em uma loja de roupas de balé. Conseguiu.

Segundo Sylvana Albuquerque, coordenadora das audições do Bolshoi, a garota tem reais chances de ser aceita na escola. "Nessa idade, conta muito o físico. E isso ela tem", afirma.

Quando acaba o teste, o semblante de Vitória muda. Fica séria e questiona sobre o resultado do patrocínio: "A tia Priscilla tinha me prometido uma roupa de bailarina no ano passado. Ela voltou e não trouxe", reclama.

Joana não sabe a melhor maneira de explicar. Resolve ser direta. "É o patrocínio que você ganhou que banca todas as suas amigas. Todo mês vou buscar uma peça na loja." A menina não sabia. Abaixa os olhos, abraça a coordenadora e chora.


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